A verdade é que temos escritores demais. Com a popularização geral dos meios de publicação, edição e compartilhamento, há uma overdose de palavra escrita produzida por uma legião de gente escrevendo sobre tudo em toda a parte, a ponto de a paisagem se turvar e se poluir de tal modo que nada mais surge de bom. A popularização das leituras fáceis também deteriora o panorama geral, acostumando todo mundo a um “piso de mediocridade” que só poderá levar ao fim da literatura. Tem gente demais escrevendo, era a hora de uma moratória de uns 10 anos. Mesmo para os escritores a coisa anda complexa, com o mercado moldando o gosto médio do público de forma a perpetuar um panorama de mesmice.
Essa é uma percepção do cenário literário bastante fácil de encontrar numa pesquisa rápida, o que me faz pensar no quanto estamos comprometidos por sua disseminação. Vejamos, por exemplo, um texto publicado por Richard Steele no jornal inglês Guardian, condenando o hábito da leitura como puro e simples entretenimento:
“É um jeito duvidoso de ler (…) que naturalmente nos induz a um modo indeterminado de pensar (…) Aquele conjunto de palavras que se chama estilo fica totalmente aniquilado (…) A defesa comum dessas pessoas é que não têm na leitura outro propósito além do prazer, o qual, creio eu, devia brotar mais da reflexão e da lembrança do que se leu do que da transitória satisfação do que se faz, e nosso prazer devia ser proporcional a nosso proveito”.
Tenho aqui ainda outro exemplo. O escritor Samuel Croxall externou no prefácio de uma coletânea sua preocupação pelo que considerava a corrosão da memória provocada pelo modo predominante de leitura contemporânea e pelo alto número de concessões que os escritores estariam dispostos a fazer em busca de maior público:
“Aquelas descobertas que envolvem e possuem (a mente) da maneira mais eficaz são obtidas sem o menor esforço, a imaginação tem a maior parte e o assunto é evidente a nossos sentidos (…) E assim são as narrativas de ficção, que devem ser compreendidas sem grande esforço da mente ou o exercício de nossa faculdade racional e onde será suficiente uma forte fantasia, com pouco ou nenhum ônus para a memória”
Outro escritor, este bem mais conhecido (digo quem é daqui a pouco), assim se expressa ao reclamar das imposições do mercado sobre os autores:
“Escrever (…) tornou-se um ramo considerável do comércio inglês. Os livreiros são os patrões fabricantes ou empregadores. Os diversos escritores, autores, copiadores, subescritores e todos os outros que operam com pena e tinta são os trabalhadores empregados pelos ditos patrões fabricantes.”
Essa corrida pelas graças do público, como não poderia deixar de ser, tem como resultado ondas mercadológicas que tentam reproduzir nas estantes os fenômenos de venda, postura criticada em outro texto, do também inglês James Ralph:
“A produção de livros é o negócio que faz o livreiro prosperar: as normas do comércio obrigam-no a comprar o mais barato possível e vender o mais caro possível (…) sabendo bem que tipo de mercadoria mais se presta ao mercado, ele faz suas encomendas de acordo com isso; e é tão inflexível ao determinar o prazo da publicação quanto ao calcular o pagamento. Isso esclarecerá bastante os paroxismos da imprensa: o livreiro sagaz sente o pulso dos tempos e, de acordo com o ritmo, decide não curar, mas estimular a doença: enquanto o paciente continua a engolir, ele continua a ministrar; e ao primeiro sintoma de náuseas, muda a dose. Daí a cessação de todos os carminativos políticos e a introdução das cantáridas sob a forma de contos, novelas, romances etc…”
O grande número de autores dedicados a escrever, não somente aqueles com pendor profissional para tanto, também é alvo de crítica ácida de outro autor inglês:
“A época atual bem pode ser denominada, com grande propriedade, a era dos autores: pois talvez nunca tenha havido uma época em que homens de todos os níveis de capacidade, todo tipo de instrução, toda profissão e emprego se dedicaram com tamanho ardor à palavra impressa”
Vamos agora falar sério (se você largou o texto antes e já formou uma ideia do que eu ia dizer simplesmente lendo o título e os primeiros parágrafos, parabéns, você é quem colabora para a internet ser o que é). O que chama a atenção em todos os fragmentos citados neste artigo, sobre cuja autoria fui deliberadamente lacônico ou impreciso, é que são todos textos publicados no século XVIII.
O primeiro foi publicado sim no Guardian, mas não no The Guardian que todo mundo conhece hoje, e sim em um periódico de mesmo nome que circulou apenas durante alguns meses de 1713. O segundo, o de Croxall, está no prefácio do volume Select Collection of Novels and Histories, organizado por ele em 1720. O terceiro é de Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoe e Moll Flanders, e foi publicado em 1725 – e, como este era o autor mais famoso da turma, reconhecido até hoje, se eu tivesse declinado seu nome no momento da citação, eu teria entregado a brincadeira antes da hora. O quarto é um excerto de The Case of the Authors, de 1758. E o último foi publicado em 1753 no periódico The Adventurer pela maior autoridade de seu tempo nos trabalhos de Shakespeare, Samuel Johnson.
Todos esses trechos estão citados no clássico estudo A Ascensão do Romance, de Ian Watt (e por isso escolhi a gravura que ilustra este texto, a original que baseia a capa da edição brasileira da obra). O que não deixa de ser engraçado. Para uma obra que mapeia com tanto critério e minúcia as circunstâncias específicas no século XVIII em que os autores Daniel Defoe (1660 – 1731), Samuel Richardson (1669 – 1761) e Henry Fielding (1707 – 1754) deram, na visão do autor, origem ao romance realista que seria desenvolvido no século seguinte, não deixa de ser curioso que algumas declarações ali transcritas, com outros termos e talvez uma forma um pouco menos rebuscada, também são usadas até hoje para outros tópicos do debate literário: o modo contemporâneo de leitura como a origem de uma geração sem concentração e sem memória, a pressão do mercado sobre os escritores para adequar-se ao gosto do público, as “ondas” nocivas de livros medíocres que tentam “administrar nova dose” de algo em que o leitor está viciado.
Os motivos pelos quais esse tipo de discurso costuma ser apresentado são variados, bem como as boas intenções (ou não) por trás deles. Há os puristas saudosos de alguma versão idealizada do mundo da Cultura, uma época em que gigantes caminhavam sobre a terra e havia um verdadeiro espírito e amor à tarde pairando sobre a face do abismo – uma posição que resulta de um inevitável autoengano que transforma os poucos exemplos legados pelo cânone em uma espécie de padrão. Outro impulso passadista ao redor desse tipo de discurso vem, claro de uma certa ansiedade com o presente que enxerga no passado um território de dúvidas pacificadas e “coisas ordenadas nos seus lugares” – um pensamento bastante perigoso, uma vez que a nostalgia desse tempo antigo normalmente vem daqueles que, intuitivamente, acham que estariam em uma posição favorável no tempo antigo, ignorando completamente as massas oprimidas ou negligenciadas do período.
Há ainda preocupações como essas que são vertidas pelos próprios criadores, e que podem ser melhor explicada pelo que, no campo acadêmico da comunicação, se chama de “gatekeeping” – “porteiro da cancela”, numa tradução que eu fiz agora para deliberadamente tirar onda. A noção de que há uma série de ritos e passos para que se estabeleça um consenso crítico em arte, por exemplo, e que parte desses processos passam pelo reconhecimento e pela validação dos “gatekeeper”, os “caras da porteira”, noutro gauderismo voluntário. Os gatekeepers (que incluem aqueles com voz no consenso crítico, seja a academia, seja a mídia, seja os próprios artistas tendo as duas primeiras instâncias como caixa de ressonância) justificam a sua própria existência como uma necessária “curadoria” no aluvião de informações e obras. Também são aqueles que “carimbam a carteirinha” autorizando este ou aquele a se proclamar artista ou escritor, por exemplo. E essa postura, curiosamente, obedece aos mesmos padrões matemáticos, seja no caso daqueles que se apegam aos mais superficiais dos critérios (“escritor é quem tem livro solo publicado”, por exemplo) seja naqueles que se consideram “defendendo o campo da poluição” – do “Inutilia truncat” de antigamente ao criador que hoje se orgulha de ter impedido que um ou outro seguisse carreira artística dando a real em oficinas.
Não que todos esses pontos não façam ainda sentido ou mereçam algum tipo de discussão ainda hoje, ou que não haja necessidade de uma crítica honesta e não condescendente; A questão é que é difícil fazer isso, imensamente difícil, e como a própria tentativa de fazer algo novo e que permaneça em arte, não é necessariamente garantido que você vai conseguir se tentar. Agora, assim como na própria produção artística, também na apreciação crítica é necessário considerar o quanto seus argumentos podem ser antigos, agregados a uma visão de mundo claramente mofada, e o quanto muitas vezes aquilo que você considera o seu pensamento independente não é um apegar-se à muleta de opiniões clichês tão vazios quanto um meme.
NEM TE CONTO – Nº 2
Já que esta semana o assunto é overdose de palavras e o fluxo constante de informação e discurso que nos atravessa por toda parte como ondas de rádio, me lembrei de um belo e delicado conto escrito pelo gaúcho residente no Rio Olavo Amaral em seu Dicionário de Línguas Imaginárias (Alfaguara, 2017
“ESTEPE”, de Olavo Amaral
Do livro Dicionário de Línguas Imaginárias (Alfaguara, 2017)
Como o título já entrega, os contos desta coletânea enfocam, de um modo ou de outro, a necessidade humana básica de comunicação e seu veículo por excelência, a língua e seus recursos. Nesta história, a última do volume, um linguista pesquisador percebe que está “morrendo de palavras”. Ele foi acometido de uma fibrose rara (imagino que fictícia, embora Amaral seja médico de formação e possa estar se referindo a uma doença real), em que cada palavra dita apressa a deterioração de sua glote – e, portanto, de sua saúde respiratória a longo prazo. A condição o força a ser dolorosamente econômico com as palavras que pronuncia. Estimulado por uma aluna, decide fazer uma última pesquisa de campo junto aos Skali, uma tribo nômade das estepes asiáticas, o povo com o idioma mais enxuto do mundo, com um vocabulário total de “cerca de três mil palavras, quase oitenta por cento delas substantivos”. Condenado ao silêncio, o protagonista vai em busca dos falantes desse idioma de extrema concisão como um acerto de contas com o vazio, representado também pela imensidão de gelo e neve em que a tribo se movimenta. Para o homem, a viagem vai representar uma última trégua (no sentido mesmo com que Benedetti nomeou seu belo romance de mesmo nome, e mais não digo).