Antes de ontem, na avenida Paulista, vimos um presidente eleito fazer um discurso conciliatório, amplo e acolhedor. Não estávamos mais acostumados com isso. Passamos quatro anos ouvindo a autoridade máxima do país mal e mal conseguir articular uma frase com sujeito-verbo-predicado que não fosse somente um precipitado de ódio, ressentimento e segregação.
Após o término da apuração dos votos, ouvimos a fala de um chefe de Estado que faz jus a este lugar, que foi preso injustamente, que perdeu seu neto e seu irmão enquanto estava na cadeia, que teve a honra da sua ex-esposa pisoteada e que, mesmo assim, quando finalmente foi eleito democraticamente (e apesar de todas as manobras diversionistas do governo da situação), escolheu se dirigir a todos os brasileiros, sem exceção. Fez uma fala inclusiva, que chegou desde o empresário privilegiado até a empregada doméstica que perdeu acesso à farmácia popular.
Isso não é demagogia ou hipocrisia.
O nome disso é humanidade.
Nos desacostumamos tanto a ouvir um político humano que até nos vimos perplexos com a banalidade que é um presidente eleito falar de tirar as pessoas da condição de fome, de preservação da Amazônia, de garantia de direitos iguais à educação e saúde. Mas nós, caro leitor, apesar de desacostumados, nós votamos com o coração na ponta dos dedos, com a certeza de que estávamos do lado da civilização, dos livros, do amor.
Nós nunca esquecemos o que nos faz humanos, e por isso agora nos sentimos representados pelo presidente eleito.
Mas mais do que restaurar a esperança, a paz e a alegria, eu acredito que votamos domingo passado pelo resgate da vergonha.
Afinal, um dia antes, assistimos atônitos à cena de uma deputada federal bolsonarista, uma mulher branca e rica, apontando uma arma e correndo atrás de um homem negro pelas ruas de São Paulo.
Como isso pode não causar vergonha em alguns de nós?
Mais do que um evento isolado, este ocorrido não apenas explicita algo do Brasil atual, mas denuncia de forma categórica os efeitos de séculos de racismo, elitismo e violência que nós mesmos, brasileiros, promovemos contra nossos conterrâneos. A mão armada da deputada não era só a dela, mas a de todos nós, a de todos os brasileiros que hoje herdam um passado de escravidão e uma história de segregação.
Repito: todos nós.
Afinal, quando tratamos de questões estruturais, podemos dizer que não há nenhum de nós que possa ter o despeito de abster-se de responsabilidade. Ou pelo menos não deveria haver. E acredito que esta foi realmente a fissura produzida no Brasil de hoje: aquela entre os que têm vergonha da nossa história e que se compadecem com as vítimas históricas e aqueles para quem isso não faz diferença, tão imersos em seu autoengano individualista e narcisista.
Os cem anos de sigilo que logo mais serão levantados não são nada comparados aos mais de quinhentos anos de silenciamento e emudecimento que sempre recobriu os horrores de nossos porões escravocratas. Graças à ciência, ao conhecimento e à vacina, já podemos tirar a máscara que nos protegia do vírus, mas agora ainda temos um longo caminho para vermos com coragem a pornográfica face de ódio que se sente à vontade, à luz dia, para apontar um arma contra um negro.
O que aconteceu nos últimos quatro anos em nosso país foi que finalmente o Brasil mostrou cruamente a sua cara. Sem pudor e sem vergonha, o Brasil tirou a sua máscara de cidadão de bem e de “paladino da moral”, como dizia Nelson Rodrigues, para escancarar o seu rosto canalha, covarde e assassino.
Neste sentido, acredito que o discurso conciliador de Lula também foi uma forma de amparo a tantos de nós que nos envergonhamos com um presidente imitando um paciente de COVID morrendo por falta de ar, que negou até quanto mais não pode a ciência e a inteligência, um despreparado que não poupou o Brasil e o mundo de uma série de esquetes dantescas em que se encenavam o pior de nós.
Se no debate Lula serviu de nosso porta-voz ao dizer a Bolsonaro “Eu não quero ficar perto de você”, depois de eleito este mesmo Lula, vencedor, rodeado por apoiadores, também disse que queria todos os brasileiros por perto.
O nome disso é dignidade.
É muito difícil acreditar que muitos não se envergonham por termos colocado um fascista no poder. E uso esta palavra de forma consciente e voluntária, afinal, não é uma alusão: ou não é a ilustração escarrada do fascismo uma autoridade de arma apontada para um cidadão do seu próprio país? O que mais precisaríamos para chamá-los de fascistas? Que ela puxasse o gatilho?
É também muito triste saber que muitos teriam, sim, puxado o gatilho.
E isso nos toca a todos. Isso deveria sensibilizar-nos a todos.
Espero que possamos ter vergonha da cara que vimos no espelho nestes quatro últimos anos. Uma figura não inteiramente nova, não inédita, claro. Mas uma cara que agora se viu no direito de não só se mostrar, mas também de gritar e ofender a todos aqueles que ainda tinham um pingo de sensibilidade em si.
Desejo de coração que esta vergonha alheia que sentimos nestes quatro anos possa ser devolvida àqueles que a produziram. Não sob a forma de vingança ou compensação, mas como um convite a que a vergonha possa ser um primeiro passo para estranhar a carranca refletida no espelho, um primeiro respiro no meio de tanto ódio, uma aposta de que possamos não apertar o gatilho, mas estender a mão para aqueles que mais necessitam.
Aos meus leitores, o meu mais profundo e carinhoso abraço.
Estamos de volta.