A rua, uma alameda tradicional, a Gabriel Monteiro da Silva, por exemplo. Em seu entorno cartesiano, vivenciam-se conformadas tentativas de desenrolar congestionamentos de carros importados; e blindados, naturalmente. Nem todos. Certamente os das ex-proprietárias de tantas e tão exclusivas mansões, hoje frequentadoras das grifes exclusivas, inquilinas por sua vez.
É a arte de shopping: o melhor de Londres, Paris e Nova York para a melhor sociedade, paulista, é óbvio, nenhuma carioca de shorts e chinelo de dedo, por favor! Mesmo que sejam as da Bündchen. E Made in China, pela madrugada, meu!, nem pensar: vai na 25 que você se encontra!
O Arquiteto mandou bem: um espaço para expor arte todo fechado, um paredão de material pesado e de uma certa rusticidade sofisticada. Rô está cada vez melhor! Vai longe, esse menino! O interior, devidamente protegido da visão caótica de lojas fronteiriças, do ruído intermitente da sociedade sobre rodas; e apenas um pequeno círculo envidraçado — uma pupila dilatada, que ideia! — despertando a curiosidade dos transeuntes. Que não são, aliás, objeto de maior ou menor interesse para o Galerista, um dos pilares da atual arte contemporânea:
— O porquê e o quê não cogito, quanto menos por mais me agito! O negócio é empurrar goela abaixo e, de preferência, por baixo do pano.
O espaço interno, um vazio ascético e elegante, num branco total, muito bem iluminado, é bem apropriado para qualquer exposição que se proponha. Muito bom mesmo, nada a ver com os conteúdos em voga — periodicamente expostos —, como dizia, em crise existencial, o Crítico, outro dos sustentáculos do sistema artístico-marqueteiro contemporâneo.
E mais, ele sempre se comparava — se justificando — a um surfista: tem que ir com atenção redobrada e a favor da onda, senão “toma uma vaca”, em carioquês…
A expectativa é de uma exposição exponencial, mais uma. A recepção, comme il faut, é o ponto alto do evento, tá bom, tem a obra de arte também, mas isso a gente vê depois! Admirem-se antes com a profusão de canapés, petit-fours, barquettes, mini–sushis e tudo o mais que, além de alimentar, orna! e entra em sintonia estético-papilar com a música do DJ, um dos mais badalados no momento. Sem se descuidar do abastecimento circulante de prosecco e vinho, o que rapidamente alegra o público presente e aderna a compostura dos inconvenientes fotógrafos de celebridades de 15 minutos.
— Sacomé, né? Temos que aproveitar — sempre diz um, limpando a boca com a manga do paletó amarfanhado, camisa e pança pra fora da calça. Tirando esses pequenos senões, aos quais já se está acostumado, um buffet da hora!
E os garçons? Ah, os garçons… De comer rezando! Os comestíveis semoventes, é claro. Cílios postiços piscando, à frente de um olhar maroto, assim pontifica a Socialite, mais um pilar na garantida solidez do movimento artístico nacional. Mas, sim, os garçons: altos, fortes e lindos, uns gatos! Vestem trajes negros, camisas apertadas no peito e nos bíceps, ou no derrière, conforme a opção; bandana e avental em poás branco, um capítulo à parte, um colírio para todos os sexos presentes ; os mais variados, pois perder uma oportunidade dessas, quem há de?
O Curador, expert e responsável pela realização, seleção e apresentação da mostra, circula de grupo em grupo, distribuindo sorrisos, induzindo admirações, despertando desejos de aquisições várias.
— Afinal, não se esqueça, meu Diretor, é o melhor negócio do momento — ou para o político de folga, vindo de Brasília.
— Senador, é dólar na cueca! Nem preciso dizer, aliás, posso garantir, a valorização futura será algo superlativo. Disso cuido eu.
Mas não está só, pois outros pilares marcam sua presença, buscados por olhares significativos e apresentações pessoais: o Mecenas e o Colecionador. Um, dedicado à arte da descoberta e do lançamento da arte, mais propriamente, do artista, movido por variados rumores que só a cultura, os conhecimentos e a maledicência podem identificar; o outro, pragmático e formador de patrimônio, próprio ou institucional, com os objetivos muito bem definidos. Ambos bajulados e invejados, peritos na arte de amealhar e lavar… “Dinheiro, my dear, o que mais poderia ser?”
E ainda tem o artista, esse, pilar de coisa alguma, se talentoso e fiel a si mesmo.
A fauna toda está presente: os da noite, os da panelinha, o contestador, os de obra consagrada e os de obra por consagrar, um dia; “não tenham dúvidas, quem viver verá”. Mas na arte contemporânea atual, o artista presente, às vezes, até atrapalha. Melhor morto. Ou desconhecido. Se estiver vivo, de preferência que fique calado, deixe o Crítico criar por ele: em Times New Roman, corpo 12, quando lhe chegar a vez.
A única dificuldade, um pequeno senão na beleza do evento, é o congestionamento no trânsito interno, entre os grupos e os garçons — que continuam seu abastecimento com muita galhardia —, mais a gente que sai e a gente que continua a entrar. As conversas não fluem, são entrecortadas. E daí?
— Mas quem é, afinal, o artista?
— Aquele barbudo lá, meio sujo, argh!
— E ele é famoso?
— Eu nunca tinha ouvido falar nele, mas para ter essa promoção toda, deve ser.
— Famoso ou protegido de alguém?
— E eu é que sei? Não é problema meu.
— Mas, e essa Instalação, já não esteve exposta? Se bem me lembro, até li que tinha sido comprada pelo Dr. Edimilso, pra mansão dele.
— Já, meu caro; faz bastante tempo. Só que aconteceu deles fazerem reformas em casa e os operários, sem dar importância àquilo, que nem sabiam o que era, se descuidaram e quebraram o vidro. Centenas de moscas e baratas se escafederam casa adentro.
— E a Maitê? Deixou colocar à venda?
— Bem que ela não queria. Ficou passada. Dizem que tinha uma queda pelo artista.
— O próprio?
— É. E ficou bipossessa quando descobriu que o marido também. E era correspondido.
— Cê tá de sacanagem!
— Cara, eu não queria essa bosta na minha casa, nem de graça.
— Nem eu, mano, esses pau torcido e esses vidro quebrado, é coisa de babaca. Quem é que acha graça nisso? Serve pra quê? Pensei que não tinha dado tempo de limpar a obra da galeria. Ei, garçom!
— Pois é, a Maitêzinha colapsou de vez, tadinha. Estava tão proud de sua última aquisição. Dizem que o marido deu algum pros operários quebrarem sem querer a genial obra. Por que, não sei…
— Mas, você que é entendido, isto é afinal uma instalação ou uma performance? Já não tô entendendo mais nada de história da arte.
— Vamos esclarecer bem todos os pontos: sou entendido em arte, que fique bem claro. Esta obra aí exposta, para o deleite de todos os seres sensíveis e antenados com a modernidade, é uma instalação, porque: “Instalação” é quando os palhaços somos nós e “Performance” é quando o palhaço é o artista.
— Tem algum título esta obra? Não vi catálogo algum.
— A original se chamava “A eternidade do asco e as visitantes noturnas”.
— Que desgraça. Deve ter sido um baita de um preju, não foi não?
— Que nada! Ela foi comprada, no ano passado, por 3 pau. Depois do evento acidente, entre aspas, e das moscas e baratas desaparecerem, depois de passado o choque inicial e de algumas reuniões com o Curador e o Crítico, eles se entenderam com o Galerista, e aí está: uma nova e genial Instalação, transcendental no tempo e dialética no espaço, à venda por 3,5 milhões. Parece que já tem comprador, um Banco lá da Faria. Vai para um Museu Estadual.
— Só se for. Vê lá se alguém poria uma tralha dessas dentro de casa. E vai com o mesmo nome?
— Tá louco? Acabaria em improbidade administrativa! Agora se chama “A efêmera eternidade do asco post-mortem”.
Às duas da manhã, os últimos convidados e penetras estão na calçada, à espera de um táxi. A Galeria já fechou.
— E dizem que arte contemporânea não enche barriga…
— Pô, cara, enche sim. Arte contemporânea, como tal, enquanto movimento dialético de expressão artística burguesa, vos digo, enche a barriga, enche a bexiga e enche o saco! E é 100% orgânica: só resulta em merda…
— Ih, já vi que tomou todas, e ainda levou um fora da lourinha.
— Táxi!
— Até a próxima vernissage!
Jacob B. Goldemberg é arquiteto e professor. Já publicou os seguintes livros: Arquitetura: Espaço-Vida (1978), Arquitetura, Escritos (1998), O Essencial do Livro dos Livros – Contocrônicas, umas tantas (Ebook – Amazon) e Sobre Judeus, Hebreus e um certo Jesus (2024).
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