A tragédia climática que se abateu sobre o Estado do Rio Grande do Sul evidenciou todas as fragilidades sociais e ambientais das nossas cidades.
Quem trabalha no voluntariado, nos postos de assistência social, nos movimentos coletivos nas periferias… já se deparava, em seu dia a dia, com muitos desafios… a violência e os crimes contra mulheres, contra crianças e adolescentes, contra os idosos, contra os animais, contra o meio ambiente.
No movimento do Coletivo POA Inquieta, pude acompanhar de perto estes impactos. E verificar como esta mobilização coletiva é essencial, necessária e eficaz, já que torna visível o invisível.
No POA Inquieta Resíduos, pude verificar a grave situação das UTs de Porto Alegre. No POA Inquieta Animais, vemos também a total ausência do Poder Público. Infelizmente, a sociedade brasileira está acostumada a tornar periférico aquilo que deveria ser central, ser o foco das atenções.
Portanto, estes grupos vulneráveis são, para grande parte de nossa Sociedade, invisíveis, ou foram, convenientemente, cobertos com o manto da invisibilidade. São eles:
A população idosa
A inundação colocou em evidência grandes fragilidades no atendimento aos idosos, tanto aos que moram sozinhos e sem familiares, tanto aos que estão em instituições. Durante as últimas semanas foram resgatados idosos de locais ilegais, insalubres, em situação de maus tratos, e em estágio avançado de desnutrição, acometidos de doenças físicas ou mentais. Muitos nem sabiam o que era receber um atendimento digno em suas necessidades, desde as mais básicas -higiene, conforto, nutrição- até maiores demandas-como tratamento médico e odontológico- e internações, entre outras urgências.
Os catadores e suas cooperativas
As Unidades de Triagem de Resíduos de Porto Alegre há anos possuem suas demandas sociais – salários – e de infraestrutura. São necessidades urgentes de reforma, conserto e substituição de equipamentos e maquinário, algumas advindas dos últimos eventos climáticos, outras mais antigas devido ao desgaste natural das construções – muitas unidades perderam telhados, paredes, foram inundadas.
Por trás das UTs estão famílias que dependem exclusivamente deste trabalho tão fundamental, uma prestação de serviço essencial e pouco ou nada valorizado pela maioria dos cidadãos, a coleta e correta destinação de nossos resíduos: outra coisa que não nos apetece olhar ou reconhecer, apenas “jogar fora” de nossas residências e nunca mais “ver”.
O quadro das UTs só piorou com as inundações, pois além de atingir as Unidades de Triagem atingiu também as casas das famílias que delas dependem. Muitas UTs foram abandonadas e ficaram embaixo d’água e muitos de seus trabalhadores foram parar em abrigos.
Ainda pela frente há o enorme desafio da gestão dos resíduos pós inundações, e que vai encontrar ainda pior uma estrutura que já se estava imensamente sucateada e abandonada.
Os moradores das periferias
Os bairros mais atingidos nas inundações de Porto Alegre coincidem, não por acaso, com as regiões menos assistidas por saneamento básico, coleta seletiva de resíduos, e, principalmente, programas habitacionais. Não é mais possível esconder o que as águas das enchentes insistem em mostrar e demonstrar: os mais atingidos pela devastação e morte foram os mais pobres, os que tinham as casas mais vulneráveis, os que foram enxotados pela especulação imobiliária para as áreas de risco. Essas pessoas são, ano após ano, cada vez mais expulsas dos espaços de dignidade urbana, removidos para longe das vistas de quem não quer vê-los, nem encontrá-los pelos caminhos.
Animais de rua e vítimas de maus-tratos
Estima-se que 15 mil animais tenham sido resgatados até agora desde as primeiras inundações. São cães, gatos, aves, porcos, cavalos. Muitos vieram junto com seus tutores, mas também muitos foram deixados para trás. Um número grande ficou sem tutores, que faleceram, ainda muitos mais morreram afogados, vítimas de maus tratos de pseudoprotetores ou ainda engaiolados nas lojas onde são comercializados como objetos.
Grande parte destes animais resgatados, se não a maioria, sempre viveram nas ruas, e nunca tiveram um acolhimento e cuidados de humanos, viveram a vida toda sem saber o que é interagir com pessoas, nunca viram ração, patê ou sachê, nem sabiam o que era caminha e cobertor, muito menos um carinho na barriga ou um cafuné.
Infelizmente, o que a tragédia nos traz são estes desafortunados destituídos de voz e de vez, que nem têm como pedir socorro sem a intervenção destes mesmos humanos, que se dizem a “raça superior do Planeta”.
Mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violências
Os desafios dos abrigos onde pessoas e famílias foram de algum modo aglomerados e obrigados a conviver trouxe à tona o melhor e o pior dos seres humanos.
Entre os acolhidos nos abrigos, houve casos de prisões em flagrante e a necessidade de se criarem abrigos exclusivos para mulheres e crianças vítimas de abuso.
Quanto sofrimento invisível ainda existe nos lares brasileiros?
Meio ambiente e resiliência climática
Nossas cidades – e isso vale para todo o Brasil – estão impermeabilizadas ao extremo!!
O binômio desmatamento e impermeabilização do solo só agrava a já defasada e ineficiente rede de drenagem urbana.
As contenções de encostas e de água são feitas de modo muito desatualizado para os atuais parâmetros climáticos globais – são feitas com concreto e cimento!
Em todas estas semanas de tragédias ainda não ouvi em nenhuma entrevista alguém falar de SBNs, as Soluções Baseadas na Natureza, tecnologias de fácil e rápida implantação e mais baratas do que as convencionais usadas no início do século 20.
Vou citar apenas algumas: telhados verdes, jardins de chuva, bioconstrução, reflorestamento de encostas.
Na área da governança, governos estaduais e municipais preparados e com suporte técnico-científico das universidades em apoio para planos diretores com estudos de impacto socioambiental e políticas públicas habitacionais coerentes com Gestão de Riscos e Planejamento Estratégico.
O manto da invisibilidade
À medida que as águas foram subindo, vieram à tona as realidades escondidas dos nossos olhos.
À medida que as águas abaixam, vemos também o que ficou no fundo.
As águas turvas da enchente não conseguiram esconder o que nem sempre pudemos enxergar. Nossas deficiências e nossos limites foram sendo postos à prova e muito ainda será demandado de cada um de nós.
Fazemos isso com tudo aquilo que não queremos ver: nossos resíduos, nossas falhas, nossos medos… levamos para longe dos nossos olhos a visão do que nos incomoda, jogamos fora e para longe aquilo que nos deixa desconfortáveis.
Mas aquilo que jogamos para longe volta sempre para nós e bate à nossa porta, mais cedo ou mais tarde, de maneira inexorável…
Que tenhamos a coragem de desvestir os muitos mantos de invisibilidade que ainda colocamos sobre tudo o que não queremos que seja visto…sobre muitas (e tantas!) camadas de tragédias acumuladas e sobrepostas a grande e primordial tragédia.
Temos agora a chance e a oportunidade de dar voz e vez a quem nunca as teve.
Tornar visíveis os invisíveis, e extinguir para sempre o manto da invisibilidade.
Patricia Mansur, 57 anos, é gaúcha de Porto Alegre e inquieta desde o nascimento. No voluntariado desde os 14 anos, participa dos spins “Resíduos” e “Animais” do Poa Inquieta. Professora, mãe, mulher, ativista. Especialista em Estimulação Cognitiva para Idosos, Pós-graduada em ESG pelo IBMEC, membro voluntária da Associação Brasil sem Frestas Porto Alegre.
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