Em pouco menos de um mês começará a 13ª Bienal do Mercosul. A proximidade do evento não apenas faz incidir sobre a paisagem da cidade de Porto Alegre um conjunto diverso de obras de arte, exibições públicas, seminários, oficinas, cursos e instalações; mas renova, a cada dois anos, o interesse da comunidade e de seus visitantes pelo próprio tema da arte contemporânea. Essa renovação periódica do interesse comunitário pela produção artística atual é, em certo sentido, reconhecida também pela própria Fundação Bienal do Mercosul, a instituição responsável pelo evento, sobretudo na medida em que ela afirma o fomento de um diálogo constante entre as propostas artísticas contemporâneas e a comunidade como um de seus mais importantes valores. Eis aí, portanto, admitido como um princípio o reconhecimento de que as bienais artísticas, de modo geral, são formatos privilegiados de estímulo à circulação, exibição, fruição, debate público e crítica de arte – seja ela diletante ou profissional – nos dias de hoje.
No passado, a cidade de Porto Alegre já foi palco de polêmicas relacionadas ao tema da arte contemporânea. Entre reproches sarcásticos, elitismos vulgares, defesas acaloradas e criticismo bem-informado, entre amor e ódio, radical indiferença ou admitida paixão, o que se nota nos últimos anos – especialmente em momentos bienalescos – é que a arte contemporânea tende a permanecer como pauta jornalística, como aperitivo intelectual de boas conversas, mas também, e sobretudo, como tema de investigação reflexiva, crítica e filosófica. Já que não se deve admoestar demais cachorro velho (e, tampouco, um cachorro morto), deixemos de lado as polêmicas que no passado animaram a imprensa e o debate público e tratemos, hoje, de um assunto mais específico, embora salutar, para entendermos algumas das razões pelas quais a arte contemporânea é, principalmente em contraste com a arte dita “histórica”, tão diferente e inquietante. Essa distinção terá um pouco a ver com a sua história, isto é, com a história da arte e das ideias sobre a arte – mas prometo, tentarei fazê-la breve para não os chatear demais.
Se, no passado, o que garantia que algo qualquer fosse definido enquanto obra de arte estava relacionado ao fato de poder produzir certos efeitos (como a imagem, a representação, etc.) ou depender de certos suportes (o quadro, o papel, os materiais da escultura, etc.) ou ainda gerar certas experiências (aquele prazer diáfano e misterioso capaz de arrebatar os sentidos que chamávamos de ‘beleza’), então essas antigas garantias formaram aos poucos, ao longo da nossa história, certas ideias sobre a arte que nos permitiram reconhecê-la, apreciá-la como tal e debater sobre ela. Como o nosso presente não é de todo uma novidade, estando, na verdade, repleto de certas estruturas do próprio passado, algumas dessas ideias persistem nele ainda hoje. E em sua peculiar persistência são elas que, em certa medida, levam-nos a enxergar o nosso presente com as lentes dessas ideias do passado. Embora essas lentes, em muitos casos, ainda nos permitam ver o presente sem maiores distorções, reconhecendo nele a presença recalcitrante e anacrônica do passado, em outros casos essas mesmas lentes obstaculizam a nossa própria visão e nos impedem de reconhecer que, por vezes, as coisas mudam, ainda que se mantenham alguns nomes ou etiquetas conceituais. Ferreira Gullar disse, certa vez, que a arte, em sua história, não melhora ou piora, não progride ou regride, mas “apenas muda com o passar do tempo”. E Paulinho da Viola – de quem eu gosto bem mais – cantou com singular refinamento e genialidade: “Tá legal! Eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim. Olha que a rapaziada está sentindo a falta, de um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim. Tá legal! Sem preconceito ou mania de passado […], faça como o velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Há, aí, um problema, portanto. Na medida em que a arte muda e antigas ideias sobre a arte permanecem as mesmas, ficamos numa situação de certo embaraço epistemológico diante da mudança concreta das formas, expressões e modos de fatura de arte, já que o conhecido ideário artístico do nosso passado parece não mais nos servir tão perfeitamente para apreender a atualidade.
Contemporaneamente, há muita arte sendo produzida sob a inspiração criativa das ideias do passado. Contudo, também é verdade que há muita arte sendo produzida hoje que busca problematizar essas ideias, contrariá-las ou, simplesmente, desenvolver outras: diferentes, auxiliares, diametralmente distintas ou complementares. De todo o modo, a questão parece se resumir, como sempre, à delicadeza com a qual o pensamento aplica suas escalas e sopesa suas medidas intensivas, buscando, como disse Aristóteles, sempre a medida justa, ou o meio-termo. Resta, portanto, saber em quais casos essas ideias do passado se aplicam perfeitamente, em quais casos elas se aplicam parcialmente e, também, em quais casos elas não se aplicam de modo algum. Esse é, sempre, o nosso principal desafio diante da arte, esse produto humano, feito por humanos e para humanos, cuja história, nos últimos cem anos, mudou tanto.
Quando Duchamp tirou um secador de garrafas comum – mero objeto utilitário usado em indústrias – do lixo, assinou-o e o propôs, ironicamente, como uma obra de arte, com esse gesto singular ele não apenas se insurgiu contra certas ideias conhecidas sobre a arte cujas implicações e pressupostos ele discordava enquanto artista, mas também, e sobretudo, exigiu por outras tantas ideias novas como novos motores inspiracionais e criativos para a arte e os artistas de seu próprio tempo. Talvez Duchamp quisesse, em 1914, indicar que a arte poderia ser definida e reconhecida por outras ideias como, por exemplo, a ideia de que a obra de arte é, na verdade, o resultado de um pensamento realizado com certos objetos e meios, e é menos o resultado de uma inspiração genial que se incorpora em telas e tintas e formas. Talvez Duchamp quisesse nos dizer: “Prestemos menos atenção ao objeto ele mesmo e mais atenção aos motivos que levaram seu artista a escolhê-lo e apresentá-lo em tal e tal contextos”. Foi Duchamp, num período em que a arte tinha recém realizado uma de suas maiores guinadas – a modernista –, que ousou dar ainda outra radical guinada nos rumos artísticos, dobrando, ou redobrando, as apostas que, menos de um século antes, já haviam sido postas à mesa.
60 anos depois, quando Andy Warhol, o artista estadunidense, apresentou em uma galeria de Nova Iorque um conjunto claustrofóbico de caixas de compensado de madeira em cujas faces havia estampado a muito conhecida marca das esponjas de aço ensaboadas chamada Brillo, foi como se aquelas ideias de Duchamp tivessem sido outra vez reanimadas muitos anos depois. Pois a imensa semelhança entre aquelas peculiares caixas Brillo feitas por Warhol e aquelas caixas Brillo vendidas em todos os mercados estadunidenses dos anos 60 era, talvez, o elemento mais marcante e mais importante daquela exposição e daquelas obras. Ou seja, o fato de imitarem a aparência das caixas comuns e, também, de imitarem algo do contexto em que poderiam ser encontradas (amontoadas, no depósito de um mercado) era o que tornava tudo ainda mais intrigante. Pois parecia que Warhol estava, com as obras e a exposição, dizendo: “Talvez agora não existam mais tantas diferenças visuais e perceptíveis entre uma exposição de arte e um depósito de supermercado”. 60 anos depois de Duchamp, Warhol admitia uma profunda imbricação entre a esfera da arte e a esfera da vida, assumindo que a separação entre elas poderia ser apenas, na verdade, um capricho intelectual historicamente urdido. Estava, portanto, como que abandonada a prerrogativa purista de que a arte deveria existir numa esfera autônoma e alheia à vida humana, completamente apartada dela.
Quando Arthur Danto, o filósofo e crítico de arte estadunidense, viu pela primeira vez as caixas de Warhol em 1964, formulou duas de suas mais conhecidas ideias. Por um lado, afirmou que “ver algo como uma obra de arte requer algo que o olho não pode [mais] discriminar – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento de história da arte: um mundo da arte”; e, por outro lado, afirmou que “do fato de que qualquer coisa possa ser uma obra de arte, não se segue que tudo seja de fato uma”. E foi assim que, diante da própria produção contemporânea, ou seja, diante do trabalho enérgico de artistas ainda vivos e atuantes, que a arte contemporânea lançou, talvez, o seu maior desafio para a filosofia e para o pensamento crítico em geral. Pois cumpria, diante dessa produção, perguntar-se como compreender esses objetos inusitados e tirados de seus contextos usuais e cotidianos enquanto obras de arte? Como objetos que parecem não mais expressar aquelas antigas ideias que, até pouco tempo atrás, orientavam nossa identificação e reconhecimento artísticos (como, por exemplo, a ideia de que a obra de arte imitava em suas imagens o mundo, ou a de que toda obra de arte dependia de certos suportes e meios de expressão específicos ou, ainda, a de que toda obra de arte causava necessariamente uma experiência de beleza) serão, agora, obras de arte? Qual será, diante desses novos objetos que não mais possuem certas características visualmente especificadoras de sua natureza, o critério que nos permite dizê-los como obras de arte? O que faz, afinal, desses objetos ‘arte’?
Ora, foi justamente por meio do pensamento de Danto, surgido depois de sua experiência com as caixas Brillo de Warhol, que uma resposta a essas questões se tornou possível. Quando Danto afirmou que compreender algo como uma obra de arte exigia de nós algo que o nosso olho não pode mais discriminar, quis dizer com isso que: aquilo que faz com que uma obra de arte seja, de fato, uma obra de arte não está mais, a partir de Duchamp e Warhol, na obra ela mesma; mas está no seu entorno contextual, está nas situações diversas que sustentam a criação, a apresentação, a exibição, a recepção e a discussão de certas coisas. Deslocava-se assim, por meio do pensamento de Danto, a ideia desde sempre arraigada na história da filosofia de que aquelas propriedades que fazem com que uma coisa específica seja uma obra de arte – sua essência – devem estar necessariamente atreladas à coisa ela mesma. Desse plano de análise filosófica que enquadra e isola o próprio objeto artístico (do mesmo modo que se isola uma bactéria ou um fungo em uma limpa e asséptica placa de Petri num laboratório) emergia, com a arte contemporânea, um deslocamento de sua imanência ou plano de análise. Ou melhor, uma ampliação dela. Pois, para atribuir um conceito como o de ‘arte’ a partir das experiências da arte contemporânea, seria agora necessário analisar também as vizinhanças contextuais e intencionais, os arredores e margens do próprio objeto, pensando-o como inserido numa miríade de práticas socioculturais que se modificam e transformam ao longo do tempo.
Nascia aí, com Danto, em 1964, a partir de Warhol, o primeiro deslocamento filosófico no plano de imanência para a análise da arte. Nascia a ideia de um mundo da arte. Ou seja, um contexto de práticas sociais complexas, culturalmente assentadas, capazes de uma transformação ao longo da história e orientadas por um interesse autorreferencial. Diante de sua existência – ou seja, diante da existência desse horizonte ampliado que estipula por si mesmo quais são as condições de possibilidade para a determinação do que é e do que não é a arte, legislando a si mesmo – a nossa opinião crítica ou nossa interpretação pouco importam se, dentro desse campo, desempenhamos um papel irrisório. Quando somos estrangeiros no mundo da arte, visitando-o apenas de tempos em tempos, tudo que dizemos, acreditamos, pensamos ou defendemos importa, na verdade, muito pouco nesse mundo. Pois ele se auto-organiza e autolegisla de modo bastante autônomo e independente. Podemos odiar, amar, discordar radicalmente ou, até mesmo, censurar aquilo que se apresenta, de dentro desse mundo, enquanto arte. Ele, no entanto, seguirá organizado e relativamente impassível diante das nossas impressões pessoais. Pelo menos até que nos tornemos, nesse mundo, um de seus participantes importantes.
Essas ideias novas sobre o mundo da arte (isto é, esse contexto de práticas sociais artísticas, dotado de história, auto-organização e capacidade de estipulação de seus conceitos, termos, dispositivos e discursos), embora expliquem e sugiram possíveis descrições sobre os modos pelos quais algo pode ser considerado e compreendido enquanto ‘arte’, podem ser igualmente problematizadas e criticadas. Um estudo sociológico do mundo da arte na contemporaneidade certamente irá demonstrar, em cenário nacional e internacional, o quanto, por exemplo, os artistas desempenham um papel ambivalente nesse mundo. Se, por um lado, a arte depende deles – pois são os artistas que produzem a arte e ela não pode existir sem eles –, então, por outro lado, outros agentes desse mundo parecem ter ainda mais força e poder que os próprios artistas. Infelizmente, de modo generalista, o papel de alguns curadores e de alguns críticos, sobretudo quando essas duas funções se interseccionam, parece, no fim das contas, ser muito mais determinante nos contextos artísticos. São eles que definem onde, como e de que modo um artista expõe seu trabalho e compete aos curadores, na maioria das vezes, um certo controle sobre os modos de acesso e permanência no mundo da arte. Ademais, o trabalho realizado por grandes galeristas e colecionadores de alto poder aquisitivo é, também, normalmente, um trabalho determinante nesse mundo, sem dúvida alguma sobrepujando o poder e o alcance que os próprios artistas, isoladamente, têm.
Não há, em certo sentido, crítica contundente do mundo da arte – ou do sistema de arte – sem que essa crítica passe ou considere as forças econômicas e como, nesse pequeno circuito, elas jogam e interpenetram às vezes perversamente. Por essa razão, é preciso estar atento ao mundo da arte e seus modos de arranjo ou recomposição em situações particulares, em contextos específicos. Escutando lados, prestando atenção nos agentes, no que falam, como falam e como se posicionam. Pois, às vezes, esses posicionamentos, que embasam certas ações, falam mais de suas próprias aspirações pessoais e menos de seu compromisso com a arte e, sobretudo, com os artistas. E, nesses casos infelizes, seu compromisso é, tampouco, com o público, seus interesses, expectativas e sua educação. É importante, diante desse estranho desenho do mundo da arte, perguntar-se onde, como e de que modos os artistas seguem sendo, por exemplo, precarizados. E as bienais, por estarem inseridas nesse mundo, também sofrem as intempéries e revezes típicos dele: emulando, no pequeno diorama público que periodicamente fabricam, alguns dos processos sistêmicos que atravessam o mundo da arte.
O que resta, então, diante dessa nova ideia, surgida com a arte contemporânea? Resta que nos acostumemos a esse funcionamento estranho. E que nos tornemos menos estrangeiros a ele. Resta fazermos uma espécie de reconciliação com essas ideias, até que mudem, ou não. Resta que sigamos pensando, sobretudo juntos, sobre elas. Isoladamente, somos pouco diante dele. Isso significa que nossas opiniões, interpretações, amores, ódios e reflexões artísticas pessoais são de todo desimportantes e sem valor? Não, de modo algum. Elas são essenciais para nós, sobretudo, já que na arte, desde sempre, encontramos uma espécie peculiar de espelho rápido em que nos vemos refletidos – nossas perspectivas, opiniões, existências individuais, mas também nossa vida coletiva, social e cultural. Contudo, é importante que, juntos, consigamos pensar, novamente, na importância crucial dos artistas, recentrando-os nesse mundo e reconhecendo que, sem eles e sem a arte que produzem, não existiria um mundo da arte em primeiro lugar. Sempre que a arte e os artistas deixam, insidiosamente, de constelar o campo das práticas artísticas, sempre que estamos desatentos a esse processo de radical descentramento, então é justamente aí que surgirão os agentes-celebridades do mundo da arte. Agentes que, por não produzirem arte eles mesmos, cometem suas pequenas usurpações sobre o valor simbólico produzido por outros.
Sigamos visitando, ou nos embrenhando, no mundo da arte. Mas, dessa vez, com um olhar mais crítico e atento aos abusos cometidos em seu nome e sua defesa. Atentemos aos valores que as instituições, sejam quais forem, acolhem e defendem e façamos, sempre, a consideração salutar, desde sempre filosófica, sobre se as ações condizem com os discursos – verificando se ele se reflete na prática ou se, na prática, o discurso é outro. E comecemos a reconhecer, novamente, a arte não só em sua artificialidade decorativa, vendável, mera manufatura. Mas, sobretudo, como modo de pensamento, reflexão, educação e de encontro com a vida e com o que nos faz vivos e humanos.