Quando pequena, num tempo onde ainda não havia YouTube, Instagram ou Netflix, uma das brincadeiras que eu mais gostava nos almanaques de atividades lúdicas comprados em bancas de revista era o jogo dos erros, geralmente 7, mas esse número era variável.
Duas imagens aparentemente idênticas, mas que teriam então 7 sutis e pequenas diferenças entre si. O objetivo era encontrar todas as tais diferenças e a graça da brincadeira – e seu desafio – era justamente o fato de que num olhar rápido as imagens pareciam idênticas.
O prazer de ir detectando essas sutilezas e não se deixar enganar pelas aparências é parte do prazer do jogo. À medida que os erros vão sendo identificados, naturalmente o processo vai se tornando mais difícil e me conecto com lembranças de não acreditar que ainda pudessem haver diferenças quando aparentemente já havia apontado todas que já tinha visto, mas o número 7 ainda não havia sido completado. Saber que existiam, mas que era eu quem não estava conseguindo enxergar tais erros, gerava frustração, irritação, mas também desafio.
Reconectei-me com esse jogo recentemente numa postagem do Instagram e, à parte da nostalgia afetiva envolvida, fui elaborando a função psicológica que esse jogo aparentemente inocente e quase bobo pode exercer na elaboração de tantos desafios emocionais que o desenvolvimento infantil pode trazer. Muito mais do que identificar erros num desenho, trata-se de já cedo descobrir – mesmo sem a total consciência disso – que as imagens enganam, que nada é exatamente idêntico.
A vida é de fato um jogo de erros, ou, para ser mais fiel, diferenças. Não havia nada de errado com nenhuma das imagens, não há nada de errado em ser diferente. À medida que vamos crescendo, espera-se que possamos ir aprimorando condições e capacidades para detectar tais diferenças, não aceitar o que nos é dado e posto.
No jogo, a atenção e o olhar vão detectando e circulando inicialmente as diferenças mais visíveis – num desenho, o laço da menina tem duas pontas e no outro somente uma, por exemplo – até aqueles bem mais sutis e quase imperceptíveis. Mas sempre que descobertos, a sensação era a mesma: aquela surpresa de como não foi percebido antes.
É fato: só vemos o que estamos preparados para ver e acreditar no que temos condições e estrutura para acreditar. Teorias afirmam que, quando as caravelas portuguesas se aproximaram de nossa terra, os índios que nela já viviam não conseguiram enxergá-las e delas protegerem-se, simplesmente porque era algo que estava fora de seu escopo de entendimento e conhecimento. Fico me perguntando como isso pode ser entendido hoje em tempos de inteligência artificial, onde imagens irreais são criadas de forma tão “real” que conseguem nos enganar, parecendo difícil diferenciar o que de fato é real.
As crianças de hoje não têm mais o jogo dos sete erros para irem aprendendo gradualmente a afinar o olhar para o mundo. Os meios certamente são outros e minha nostalgia não nega as transformações atuais e os avanços, mas ao ver aquele post com esse jogo e fazer analogias com a vida, me peguei pensando nesses erros que na verdade não são erros, mas sim diferenças e em nossos tempos atuais onde há tanto perigo de fake news e fake imagens que nos ludibriam e iludem.
Lembrei também de uma história amplamente divulgada, mas que depois provou-se mito, de que Charles Chaplin teria concorrido num concurso de sósias dele próprio e ficado em terceiro lugar. O que isso nos comunica? Que erros enxergamos no espelho à medida que o tempo passa e vemos cabelos brancos que aparentemente até ontem não estavam ali?
A vida é um jogo não de 7, mas de muitos erros e outros tantos acertos. Certo mesmo é que precisamos urgentemente voltar a saber jogar.
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Foto da Capa: Freepik