Leite sem lactose, café sem cafeína, pão sem glúten, cerveja sem álcool.
Tem me chamado a atenção como vivemos em uma cultura que cada vez mais oferece produtos e mercadorias destituídos justamente daquilo que fazem que eles sejam eles mesmos: a essência do café é precisamente a cafeína. A do pão, o glúten. E assim vai.
Claro que isso pode ser importante para aquelas pessoas que têm algum tipo de intolerância ou alergia alimentar. Que bom que hoje existem opções para dar conta de algumas condições que eram ignoradas até pouco tempo.
Entretanto, vemos ganhar mais e mais terreno uma espécie de culto da privação: fulano acorda às 5h da manhã pra ir à academia, ao meio-dia come um prato de salada com frango e batata doce, à tarde belisca uma fruta – e não pode ser suco pra não perder “as fibras naturais” -, à noite come um sanduíche natural (o pão sem glúten, a alface e o tomate orgânicos e o atum), um comprimido de melatonina (natural, claro) antes de dormir e pronto.
Acabou o dia.
De novo: tudo certo querer cuidar da saúde.
Mas convido o leitor para dar mais uma volta sobre esta questão e pensar o quanto este esvaziamento da vida acaba tendo efeitos mais amplos.
Por exemplo, tem sido uma tônica no consultório pessoas que não fazem ideia do que as excita sexualmente. Não porque este é um campo complexo e repleto de tabus e vergonha, mas porque estes pacientes nunca se fizeram esta pergunta.
Não à toa, testemunhamos uma crescente no número de homens que tomam um Viagra ou similar mesmo sem terem diagnóstico de disfunção erétil antes de qualquer relação sexual (como abordei, de forma colateral, em outro texto publicado aqui na Sler.
Da mesma forma que consumimos café sem cafeína ou leite sem lactose, também muitos têm transado sem tesão, mais preocupados com a performance do que com o prazer em si. Mais uma vez vemos aí o consumo ou o exercício de algo destituído de sua parte essencial.
É como se estivéssemos fazendo uma barganha com a morte: se nos privarmos das gorduras, do sódio, do açúcar, enfim, de tudo o que “faz mal”, então viveremos mais. O que passa despercebido aí é que este mesmo processo de cuidado de si acaba se transformando em um culto à própria morte ou à beleza padronizada (o que quase dá no mesmo, diga-se passagem).
Mas este esforço de privação é muito elogiado e bem-quisto em nossa sociedade, como se a assepsia tivesse se tornado um valor desejável.
Aliado a isso, temos todo um incremento dessa grande parafernália neoliberal de “autocuidado”.
Tomar a si mesmo como merecedor de cuidados é importante, obviamente, mas é também o terreno fértil por onde podem se exercer as mais terríveis violências: facilmente a rotina de skincare se torna um ritual para ter a pele igual à daquela celebridade e a dieta low-carb vira uma demanda pelo corpo perfeito do Instagram.
O autocuidado pode ser visto como uma das derivações atuais de um fenômeno já bem antigo e conhecido por todos, o da “autoajuda”.
Ainda que muitos tenham feito bom uso destes livros, também sabemos que muitos deles nada mais fazem do que reproduzir e difundir ideais impossíveis da cultura. Por não terem a preocupação com o contexto mais amplo (“Por que será que alguém não consegue ter foco?” ou “Qual o motivo para eu ser infeliz no meu trabalho?”), estas produções atribuem ao indivíduo a causa de problemas que, na verdade, são questões culturais amplas.
O “auto” do “autocuidado” denuncia a mesma lógica: quando as práticas de cuidado de si ficam todas ao encargo do indivíduo, isso muito bem pode trazer uma sensação momentânea de bem-estar, mas mantêm intactas as estruturas que produzem o sofrimento com o qual se está lidando.
Ao longo do tempo, essa narrativa do autocuidado acaba sendo uma das tantas que culpabilizam o indivíduo e retiram da cena a pergunta que, hoje em dia, talvez seja a mais importante a nos fazermos como sociedade: o que significa viver uma vida boa?
Apesar de parecer ingênua, essa interrogação nos ajudaria muito a levar adiante algumas pautas essenciais, especialmente se esta reflexão tivesse uma contraparte prática no plano social e político. Um dos pontos difíceis aí é lidar com o fato de que nós não somos seres luminosos que só temos a vida e alegria como horizonte. Muitas vezes, temos que fazer um balanço do quanto é necessário barganhar para termos uma vida interessante: claro que um corpo de quem não fuma ou não bebe, por exemplo, é mais saudável e, em teoria, se manterá vivo por mais tempo, mas será que abdicar de coisas que nos dão prazer é sempre um bom negócio?
Será que vale a pena deixar de comer aquela torta de chocolate para ganhar alguns minutos a mais de vida?
Parece estranho colocar a questão desta forma, mas é justamente assim que ela vem sendo tratada dentro da lógica neoliberal: tudo pode ser quantificado e, assim, tudo passa a ser equivalente. Como se ao comer o bolo estivéssemos cometendo um pequeno suicídio.
Será que vale a pena uma vida longa, mas insossa, sem essência?
Se pensarmos que uma vida interessante passa por termos vivências diversas e experimentarmos as várias formas de o corpo estar no mundo, então não estaríamos sendo partidários de uma vida sem graça, uma vida sem vida?
O que é tóxico, afinal? O açúcar daquela torta de chocolate ou o imperativo cultural pelo corpo escultural? A cafeína que tira o nosso sono à noite ou a obrigação de estar no trabalho todos os dias muito cedo?
Curiosamente, mas talvez não tanto, é justamente em uma cultura que se propõe a oferecer tudo, em que temos a sensação de que toda satisfação está ao alcance de um clique, que as práticas ditas de autocuidado são tão moduladas pela ideia de privação e assepsia.
Um paradoxo que acaba, no fim das contas, operando pela lógica da culpa e do sacrifício.
Uma religião das coisas sem essência.