Não me lembro da última vez que havia estado em um planetário, mas não vou esquecer a mais recente. Semana passada estive em Lisboa, passei em frente ao planetário e resolvi entrar. Não foi uma visita planejada, mas de repente estava sentada em uma sala escura, olhando para um céu estrelado no meio da tarde. Foi muito mais do que uma sessão de explicações sobre o universo em projeções coordenadas e com narração ao vivo de um astrônomo. Foi quase como uma sessão guiada de terapia. Ao sair eu não era a mesma. Todas as minhas inquietações sobre a existência humana, que estavam adormecidas, despertaram e saíram de mãos dadas comigo daquele local. Voltei a pensar sobre a vida, sobre a morte, sobre a indivisibilidade de ambas. E me sobram pensamentos.
A única certeza que temos é que chegará um dia que iremos morrer, porém não é o tipo de assunto que se trata com naturalidade. Se para os simples mortais é assim, para os filósofos a morte é quase uma musa inspiradora. Arthur Schopenhauer, por exemplo, comparava a vida com a travessia de uma montanha. Nascemos na base e começamos a subida. Temos plena consciência de que, após o cume, chegaremos à reta final, mas não damos muita importância. É apenas depois do cume, quando avistamos a morte, que começamos a nos preocupar com ela, é neste momento que essa “ausência de vida” se torna um dos nossos maiores medos.
Porém, o que seria do mundo sem Ela? O cenário de um mundo sem a morte vem da imaginação de um escritor. Aos 82 anos, já bem depois do cume da montanha, José Saramago escreveu o romance “As Intermitências da Morte”. Nesta alegoria sobre a vida, e sobre a morte, Saramago nos livra do medo de morrer: a morte sai de cena e finalmente conquistamos a imortalidade. É aí então que o maior sonho do homem se transforma no mais terrível pesadelo. O governo não sabe como pagar as pensões, a igreja não sabe como manter a crença, as famílias não sabem o que fazer com os seus velhos. É o caos na terra. Ela então tem que voltar para salvar a humanidade. E é assim: somos salvos pelo nosso medo.
Todos nós que estamos aqui hoje neste mundo, incluindo os bebês que acabam de nascer, com raríssimas exceções, em 100 anos já não estaremos mais. Aqui na Europa, o país onde se tem a maior expectativa de vida é a Espanha, com uma média de 83,3 anos, e a mais baixa expectativa regista-se na Bulgária, com 71,4 anos. Ao nascer, já temos uma previsão de quando vamos morrer.
Por falar em nascimento, vamos voltar lá pra sala escura do planetário.
Você já se deu conta de como é mágico o nascimento de uma estrela? Todas elas nascem de modo semelhante, em nuvens de poeira e gás. São reações químicas impulsionadas pelas forças da física. Partículas que se fundem, disputam espaço, se comprimem, se movimentam e geram um calor intenso. Neste vai e vem de gás e poeira, se faz a luz, o brilho. O que nossos olhos enxergam no céu, levou pelo menos um milhão de anos para se formar.
Assim como nós, elas nascem, crescem e morrem.
Enquanto o nascimento de uma estrela é magia, a morte é poesia. É que, dependendo da quantidade de massa, elas podem morrer de várias formas. E não é só isso, seus remanescentes podem se transformar em coisas diversas, entre elas anãs brancas, buracos negros e ainda a base para a formação de novas estrelas. É quase uma ressurreição.
Isso, por si só já é fascinante, mas a poesia está no fato de que, algumas vezes, vemos o que já não existe.
As estrelas já morreram, e mesmo assim seguem ali aos nossos olhos. A física explica o fenômeno pela distância e pelo tempo que a luz viaja até podermos vê-la. Prefiro pensar de forma poética: é vida na morte. Olhamos para o passado e o percebemos como o presente.
Saímos do planetário…
No passado dia 16 de agosto nasceu o primeiro bebê de inseminação pós-morte aqui em Portugal. O pai do bebê, morreu em 2019. Ainda em vida, decidiu congelar sêmen e deixou documentado por escrito que queria que a mulher tivesse um filho dele, mesmo depois que já não estivesse mais aqui. Foi assim que nasceu Hugo. A morte extinguiu a matéria do Hugo pai, mas o brilho da vida renasceu no Hugo filho. A ciência novamente explica, eu continuo preferindo a poesia: é outra forma de vida após a morte.
E se a vida e a morte se mostram tão intrinsecamente ligadas em tantos momentos, o que devemos temer então?
Prefiro ficar com a resposta que damos às crianças quando se deparam com uma ausência, seja de alguém da família, um conhecido ou um animalzinho de estimação:
Virou estrelinha! E a história da estrela já contei acima. Ela ficará anos sem fim passando de estrela a ser matéria para novas estrelas… E assim por toda a eternidade.
Foto da Capa: Pexels