Em dezembro de 1955, em Montgomery, Estados Unidos, Rosa Parks sentou-se na primeira fileira de assentos reservados para negros no ônibus municipal. Pouco depois, para dar espaço a brancos que ingressaram no coletivo, o motorista mudou o sinal de “colored” para fileiras mais atrás, pedindo que os negros trocassem de lugar. Enquanto outros três pacificamente se levantaram, Rosa recusou-se. Foi presa por descumprir lei de segregação racial vigente no país desde 1900. Seu ato foi um marco para o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, e que culminou, em novembro de 1956, com a declaração de inconstitucionalidade, pela Suprema Corte, da lei municipal de separação de assentos.
Corta para abril de 2023, em bairro nobre de Porto Alegre. Um homem negro e seu filho de 18 anos estavam dentro do carro em frente a um prédio de bom padrão, quando foram cercados por três motocicletas da Polícia Militar. Agentes armados ordenaram que, “sem gracinhas”, saíssem do veículo com as mãos na cabeça. Sofreram revista pessoal e veicular. A tensão apenas diminuiu quando o homem explicou que aguardava para dar carona à esposa, prestes a acabar o expediente de diarista, ao que os policiais informaram que a abordagem fora motivada por chamado de um morador.
Em Montgomery e em Porto Alegre a livre locomoção e o exercício dos direitos civis por pessoas negras foram abalados. Parecem situações diversas, motivadas por uma lei segregacionista por lá e pelo exercício do direito fiscalizatório por aqui. No entanto, ambas são relacionadas, em sua origem e essência, ao mais puro racismo estruturado na sociedade.
Pesquisa realizada entre maio e junho de 2021 em São Paulo e Rio de Janeiro pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), apurou que ser negro nestes dois estados significa risco 4,5 vezes maior de sofrer uma abordagem policial em comparação a um branco. No grupo dos que foram abordados mais de dez vezes, o percentual foi de 19,1% entre os negros e apenas 8,5% entre os brancos. A diferença de tratamento é outra conclusão alarmante da pesquisa, pois entre brancos 66,8% responderam positivamente a algum tipo de violência (física, verbal ou psicológica) percentual aumentado para 88,7% entre negros.
Enquanto não há uma real mudança cultural, que passa pela representação das pessoas negras em espaços de poder na sociedade, é crucial que se debata a adoção de critérios objetivos e passíveis de controle das abordagens policiais, tais como a criação de autos de revista pessoal e a uniformização de tratamentos, independentemente da cor ou origem do cidadão. Não podemos mais repetir os padrões implantados logo após a abolição formal da escravatura em 1888, quando mecanismos de criminalização reflexa da cultura e das religiões de origem africana transformaram a população negra no maior alvo da perseguição e da vigilância estatal, o que permanece nos dias atuais. A sociedade que queremos não mais comporta este modelo.
*Helena Lahude Costa Franco, advogada criminalista e professora universitária.
Foto da Capa: Voz das Comunidades/ Bruno Itan / Divulgação