Fui tomar um café com o poeta Armindo Trevisan. Presencial, é claro. Fazemos isso, há décadas, e a rede social felizmente não virtualizou o encontro. Eu preferia que fosse semanal, mas hoje me disperso em trabalho e já não tenho cacife para tanto. Aproveito o café mensal, mas ontem fiquei preocupado. Armindo me escreveu uma dedicatória de seus melhores poemas, marcando um encontro comigo no “mundo prometido por Jesus – um judeu”.
Depois seguiu falando sobre a morte, incluindo um certo cansaço nos seus 90 pros 91. Fiquei paralisado. Isso sempre me acontece neste tipo de situação. Por mais que já tenha perdido muita gente querida, por mais que eu mesmo já tenha morrido em parte. Deve ser a máxima do Canetti: “a morte é sempre nova”, ou seja, a gente nunca se acostuma. Mas estávamos vivos, discutindo, inclusive, se a forma da espuma no café que a gente tomava era um cavalo ou um leão.
Cleuza estava junto e discordou do marido. Disse que a família inteira, no mês passado, pegou uma virose braba e a recuperação melhor foi a dele. O médico atestou que o “seu velho” tinha o sistema imunológico mais veloz e eficaz de todos. A fala otimista de Cleuza me despertou da paralisia mórbida e ainda resgatou um certo humor. Falei, então, que Jesus havia acabado de me mandar uma mensagem.
O devoto poeta, sabendo de meu ateísmo, quis saber o que eu estava inventando. Inventei que Ele disse ter ouvido as preces mortíferas do bardo, mas não podia atendê-lo, pois não possuía poderes diante de um sistema imunológico rápido e eficaz. Rapidamente, Armindo mudou de assunto. Blasfemou contra uma livraria que ousava se chamar de livraria sem contar com um único exemplar dos pensamentos de Pascal.
Disse que andava ocupado, puxando a orelha do livreiro. Falando nisso, eu falei que devia ter se enganado, pois, junto a outro livreiro, procurei a lírica de Santo Agostinho que ele havia me recomendado. Não, não se enganara, garantiu-me o poeta, enganados estávamos eu e o livreiro, já que a lírica de Agostinho constava nos três volumes consagrados aos Salmos, que, aliás, precisava reler pela décima vez, mas não podia, pois queria finalizar o volume de seus poemas inéditos, o que estava meio atrasado, pois andava às voltas com a escuta e a escrita sobre Bach, a quem vinha redescobrindo no YouTube.
Quando nos despedimos, disse que ia me escrever sobre a tradução adequada dos Salmos e que talvez me emprestasse a sua, depois da décima releitura, evitando que eu caísse na versão exagerada dos portugueses. Também combinamos o lançamento de nosso livro a quatro mãos para setembro e prometeu não partir antes disso. O acordo foi testemunhado pela Cleuza. À saída, até eu ouvi a voz de Jesus tranquilizando o trio quanto ao Armindo, depois de garantir que a forma na espuma do café era mesmo a de um leão.
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Foto da Capa: Ilustração gerada em Pikaso