“Abobados da enchente” é uma expressão que se originou após a então maior enchente de 1941, em Porto Alegre, e se referia, diz a lenda, ao estado catatônico das pessoas diante da devastação. Depois passou a indicar os nascidos em 1941, filhos da enchente, pura galhofa.
A tragédia é tanto maior quanto mais próxima do nosso dia a dia. Dos nossos amigos, nossos familiares e de nós mesmos. E esses tempos de exceção são capazes de iluminar o melhor e o pior de cada um. O melhor a gente sempre se surpreende, mas sabemos já que, nessas horas, certos humanos têm uma capacidade excepcional em se doar.
O pior é diferente. É insidioso, pérfido. E se sente tanto mais quanto mais perto for a dor. E surpreende não pelo grau de maldade, de crueldade, de egoísmo, de falta de humanidade, isso a história nos conta. Espantosa é a criatividade infinita que o pensamento torto de uma mente humana é capaz de produzir. E, convenhamos, não chamaria certas pessoas nem de abobados da enchente, porque, nesse momento, não há graça.
Primeiro Ato: Dia desses, numa academia, eu tentando manter uma rotina saudável, acompanhei uma conversa ao lado. Uma jovem, loira, por volta dos 35 anos, magra, belos dentes e pele hidratada, conversava com a colega sobre um incômodo seu. Olhou para os lados para ver se alguém mais estava ouvindo – e eu disfarcei -, ia fazer uma revelação muito íntima. “Olha só, com tantos helicópteros de salvamento voando por cima do meu prédio, não posso mais fazer topless na piscina da cobertura”.
Segundo Ato: Dias atrás, uma comitiva de empresários do Rio Grande do Sul, correu à capital federal para se encontrar com ministros com uma ideia luminosa. Como eles estavam com boa parte da produção parada, queriam propor ao Governo que autorizasse a suspensão dos contratos de trabalho de seus colaboradores. Traduzindo, suspender salários. E, bondosos que são, para não prejudicar muitos os seus colaboradores, que o Governo criasse uma bolsa auxílio para essa gente. Esses mesmos Senhores do Comércio e Senhores da Indústria gaúcha são os que vivem vociferando contra a intervenção do Estado, contra aumento de impostos e contra servidores públicos. E são os primeiros a sair correndo – ao sinal de qualquer espirro de crise – para se agarrar nas tetas da mamãe Estado, defendendo o papel estatal no apoio à iniciativa privada.
Terceiro Ato: Em Porto Alegre, dias antes da tragédia da enchente, outra se sucedeu. Sem água, com fogo. Uma pousada, contratada pela prefeitura para abrigar pessoas sem teto, ardeu em chamas matando 10 pessoas e ferindo outras 15 gravemente. O porta-voz da prefeitura, o secretário da área social, garantiu que a empresa estava com documentos em dia para receber 250 mil reais por mês, mesmo sabendo que a pousada não tinha PCCI dos Bombeiros, mesmo ciente de um processo que corria no Ministério Público contra a pousada. E sobre as condições insalubres do local, o secretário disse: “Onde não há baratas e ratos?” Falava da sua própria casa, será?
O tema da pousada foi atropelado pela tragédia da hora. E quando as águas colapsaram a capital gaúcha, momento em que a área social mais precisa trabalhar, o mesmo secretário foge, feito guri que cansou de brincar, no caso com os pobres. Alegando estar esgotado, coitado, pediu demissão – ou foi demitido, não se sabe – e vai para onde? Adivinhem? Paris, é claro, onde todo mundo vai descansar quando bate um estresse.
Quarto Ato: Celebridades têm atuado de forma incrível no apoio às vítimas. Doando dinheiro ou donativos anonimamente ou mesmo desembarcando no Rio Grande do Sul com lanchas e jet-skis para apoiar no resgate. Outros, como um talentoso e famoso e exibido publicitário baiano – ou apenas um famoso exibido – resolveu aportar estrondosos 100 mil reais da sua fortuna em apoio às vítimas, e o fez em duas parcelas de 50 mil. E publicitários sabem como ninguém, não basta botar o ovo, tem que cacarejar. A cada pix enviado, o exibido colava o comprovante bancário no seu perfil do Instagram para que os seus súditos saudassem a bondade de sua majestade. E conseguiu, milhares de seguidores embriagados e comovidos curtiram, comentaram e aplaudiram tamanho desprendimento.
Agora, sério, desconsidere tudo que escrevi acima. De verdade, não estou querendo julgar ninguém, não sou juiz, vá que eu mesmo esteja padecendo de alguma falha cognitiva e eles todos estejam dando o melhor que um ser humano pode dar.
Escrevi tudo isso, na verdade, só para falar do outro extremo, das pessoas que muitas vezes elas próprias foram vítimas e estão deixando para resolver suas vidas depois, focando em ajudar a outras tantas vítimas que ainda precisam. Ou os voluntários e voluntárias que podiam estar acompanhando a tragédia pelo Instagram, mas usam recursos pessoais e passam noites em claro mobilizando doações e fazendo resgates. Para esses, ninguém vai dar like e nem placas.
E mal sabem eles de um efeito colateral do seu esforço, um bem imensurável: permitir que continuemos acreditando na Humanidade. Obrigado, gente.
Foto da Capa: Freepik AI Generated
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