Entrar em cena, subir ao palco, todo mundo sabe, dá aquele friozinho na barriga. Começar uma coluna também. Já escrevi dezenas de artigos para cá e para lá, mas nunca assumi, de fato, uma comunicação contínua com leitores indefinidos. Quem serão vocês? O tempo vai dizer. Por enquanto, minha obrigação é botar as letras na tela e torcer para acertar.
O texto de abertura (originalmente publicado em 1983, no Jornal do Sul) foi escolhido para mostrar a pretensão desta coluna. O editor quer, e eu também, que os textos sejam sobre a cidade e a arquitetura que inevitavelmente a constrói. São duas atividades interligadas. Arquitetura até se pode fazer no campo ou na lua. Fazer cidades sem arquitetura é, o senso comum diria, impossível. Não existe cidade sem edifícios e o projeto de cada edifício é tarefa dos arquitetos. Será? Tudo o que se vê na cidade é arquitetura? O principal mentor da arquitetura no Brasil, Lúcio Costa – o que desenhou Brasília –, separava a arquitetura da construção. No entender dele, as cidades brasileiras tinham – e tem, digo eu – muita construção e pouca arquitetura. Complicou? Vamos ver o que ele diz sobre a arquitetura:
“Enquanto satisfaz apenas às exigências técnicas e funcionais – não é ainda arquitetura; quando se perde em intenções meramente decorativas – tudo não passa de cenografia; mas quando – popular ou erudita – aquele que a ideou, para e hesita, ante a simples escolha de um espaçamento de pilar ou da relação entre a altura e largura de um vão, e se detém na procura obstinada da justa medida entre cheios e vazios, na fixação dos volumes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento ao jogo dos materiais e seu valor expressivo – quando tudo isto vai pouco a pouco somando, obedecendo aos mais severos preceitos técnicos e funcionais, mas, também, àquela intenção superior que seleciona, coordena e orienta em determinado sentido toda essa massa confusa e contraditória de detalhes, transmitindo assim ao conjunto, ritmo, expressão, unidade e clareza – o que confere à obra o seu caráter de permanência: isto sim – é arquitetura.”
Lucio Costa, além de arquiteto genial e intelectual, escrevia muito bem. Veja, em uma única frase ele consegue definir o que é a arquitetura e a diferença entre arquitetura e construção!
Para haver arquitetura é preciso haver intenção de fazer arquitetura. Quando você anda pela Praça da Alfândega, por exemplo, você já parou para observar que os prédios do MARGS e do Memorial do RGS, apesar de suas diferenças notórias, cumprem um papel para além de si mesmos? Já analisou o conjunto? Percebeu que este conjunto tem uma intenção urbana importante? Um tem uma torre do lado direito, o outro tem a torre do lado esquerdo, os dois dão importância, enquadram o eixo que vai do pórtico do Cais do Porto ao monumento General Osório. Há toda uma orquestração neste sentido de vários elementos que compõem a praça: as palmeiras, o calçamento, a vegetação. O resultado expressa disciplina, ordem, hierarquia, poder. Valores associados ao governo forte, positivista, de Borges de Medeiros durante a Primeira República no Rio Grande do Sul.
A praça, que foi construída ao longo do tempo, teve no arquiteto Theo Wiederspahn sua principal referência (ver coluna do Maturino Luz). Cada nova edificação buscou afinar-se a um princípio ordenador do conjunto. Houve desafinações ao longo do tempo, é claro, mas felizmente, a partir do ano 2001, o projeto Monumenta, com a liderança da arquiteta Briane Bicca, restituiu sua alta qualidade e voltou a ser um orgulho da cidade. Cada elemento em si – prédio, pórtico e monumento e esculturas – tem, por sua vez, suas próprias intenções e as qualidades estéticas que Lucio Costa aponta. Se fôssemos nos dedicar a cada um, poderíamos analisar seus estilos, perceber o significado dos elementos escultóricos das fachadas, do monumento, fazer relações históricas sobre o uso do ferro e vidro na estrutura do pórtico do cais e assim por diante. Enfim, há um mundo a explorar e interpretar onde a arquitetura foi chamada para dar expressão a necessidades práticas e simbólicas da sociedade.
Na Praça da Alfândega, a construção estava a serviço da arquitetura, se complementaram no objetivo de um espaço digno, simbólico da importância que se dava a comunidade que a planejou e viabilizou. Não é bonito? Sim, mas também faz pensar nos dias de hoje, quando a arquitetura tem tão pouca expressão cultural e raramente é entendida como uma arte. Por que encontramos na cidade antiga mais preocupação com o resultado, com a “intenção”, do fazer da própria cidade? Boa pergunta para deixar para nossos leitores.