Desde as enchentes, estou como uma das coordenadoras do Abrigo Emergencial 60+, o primeiro voltado para pessoas idosas em Porto Alegre, uma experiência transformadora na minha vida, que agora se encerra. Deixo aqui um relato da sua existência porque sei da sua importância como exemplo de política pública que poderia ser adotada e porque fez parte da história desse momento único que vivemos durante o maior desastre climático do Rio Grande do Sul.
A necessidade
O Rio Grande do Sul é o estado com o maior índice de envelhecimento do Brasil e com uma das maiores médias de idade do país. Com o desastre climático que nos assolou em maio, entre os mais velhos que perderam tudo, houve aqueles que também eram dependentes, acamados, tinham comorbidades, ou seja, doenças ou condições que ocorrem simultaneamente no mesmo organismo. Quem iria trocar suas fraldas, dar banho, cuidar de suas feridas, administrar medicamentos, oferecer alimentação específica, trocar bolsas de colostomia, medir seus sinais vitais ou mesmo auxiliar no controle do diabete?
As pessoas idosas já eram vulneráveis em suas casas, ao perdê-las na enchente precisavam de um olhar e um acolhimento especial.
A origem da história
Duas mulheres obstinadas e apaixonadas pela causa das pessoas idosas se mobilizaram naquele momento: Melissa Rosa, nutricionista, e Michelle Bertoglio Clos, assistente social, ambas também profissionais especializadas na área da gerontologia e com ampla rede de contato entre pessoas na área, a qual se juntaram a Cristiane Moro e a Fernanda Brochado, fisioterapeutas, o dr. Eduardo Sabbi, médico, e eu, na coordenação. E foi com essa potência de contatos e de energia que se mobilizou uma união de esforços da sociedade civil, com o apoio da Cruz Vermelha do Brasil – Rio Grande do Sul, do Conselho Estadual de Idoso – CEI, o Conselho Municipal do Idoso de Porto Alegre – COMUI, da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, Secretaria Municipal de Saúde, SESI, Colégio Farroupilha e Instituto Dunga, entre outras Instituições parceiras e voluntários, conseguiram colocar em operação o primeiro Abrigo Emergencial 60+ de Porto Alegre, que esteve localizado na Av. João Pessoa, 1315, de 17 de maio a 23 de agosto de 2024. Nesse tempo e espaço, histórias e pessoas se encontraram e criaram momentos inesquecíveis e únicos.
Como acessavam
O Abrigo Emergencial 60+ ofereceu 40 vagas com o propósito de acolher pessoas idosas que estavam em outros abrigos em situações complexas de saúde. Para que a pessoa fosse encaminhada para o abrigo, era obrigatório que os coordenadores dos outros abrigos já existentes preenchessem um formulário de inscrição para que ela pudesse ser incluída na lista de espera, de acordo com critérios técnicos da equipe da saúde.
O Cuidado
Tivemos um olhar para a saúde de uma forma integral, com uma equipe médica na área da geriatria, psiquiatria e neurologia presencial e contando com um sistema de telessaúde para atendimento especializado em várias outras especialidades. Também contamos com fonoaudiólogos, dentistas, psicólogos, nutricionistas, terapeuta ocupacional, educador físico, farmacêuticas, fisioterapeutas, sem contar a equipe de enfermagem, técnicos e cuidadores 24h. Além de tudo isso, oferecemos roda de escuta e trama (às segundas-feiras), arteterapia (às terças e quintas-feiras), apresentações musicais (às terças-feiras e aos sábados), eventos (aos sábados), cinemas (sessões de cinema aos domingos) e, se não bastasse, também Práticas Integrativas e Complementares de Saúde – PICS. Como o aspecto espiritual é importante, criou-se o Canto da Fé, assim nomeado pelos próprios Abrigados, uma bancada onde cada um – independentemente de seu credo – ia orar. Mas, claro, que ainda tivemos uma equipe de voluntários na Recepção, no Estoque e na de Serviço Social que atuava não só nessas áreas, mas também na socialização e apoio em muitos outros aspectos, como na busca de animais perdidos pelos Abrigados, por exemplo. Cuidado com o olhar humanitário e humano global, centrado na pessoa idosa.
As frentes de trabalho
Desde o princípio, a gente atuou numa perspectiva de trabalho em quatro frentes:
1ª frente de trabalho, as 40 vagas para atender pessoas idosas vulneráveis com situações de saúde complexas, previamente cadastradas pelos coordenadores de outros abrigos, conforme acima descrevi.
Na nossa 2ª frente de trabalho, o atendimento de saúde volante às demais pessoas idosas cadastradas, mas que não pudemos absorver em nossas instalações na João Pessoa, em Porto Alegre. Essas pessoas nós encaminhamos para as Unidades de Atendimento Primário do SUS para acompanhamento e controle.
Na nossa 3ª frente de trabalho, realizamos o atendimento de Instituições de Longa Permanência para Pessoas Idosas – ILPIs atingidas pelo desastre ecológico, beneficiando mais de mil pessoas idosas de Porto Alegre e regiões da Serra, Vale dos Sinos, Vale do Paranhana e Central do Estado.
A nossa 4ª frente de trabalho foi a volta para casa, quando atuamos para garantir um retorno seguro para cada um dos 61 abrigados que passaram por nosso espaço.
Os desafios do caminho
A gente nunca havia se deparado com tamanho desafio: do nada construir um serviço humanitário especializado para pessoas idosas em meio a uma catástrofe. E fomos aprendendo fazendo. Onde cada um e cada uma entrou com sua expertise, o seu jeito, oferecendo o seu melhor para essa construção guiada pelo nosso propósito.
No decorrer da nossa curta e intensa história, vivenciamos embates, dúvidas, questionamentos numa sintonia de princípios, profissionalismo (note-se, mesmo que estejamos falando de voluntariado, ele é fundamental) e num bom humor permanente que nos manteve em todos os momentos. De minha parte, penso nos pontos abaixo como fundamentais para nossa ação e sucesso, não necessariamente nessa ordem:
- A captação de doações e financiamento: a mobilização da sociedade por meio das campanhas que fizemos nos permitiu a independência e sustentabilidade do projeto. Aqui, um agradecimento especial para todos os milhares de doadores, pessoas físicas e jurídicas que nos ajudaram a reunir os mais de R$150mil reais, sem falar das toneladas de doações em forma de alimentos, produtos de higiene, limpeza, fraldas geriátricas, equipamentos, colchões e tantos outros itens que recebemos.
- A estrutura e processos: a gente tinha a necessidade, a decisão, a vontade. Sabia que precisava fazer. E, por incrível que pareça, tudo se fez de maneira muito orgânica e natural. Desde a idealização até a instalação da estrutura, captação do voluntariado, definição da estrutura, dos processos e quem atuaria como e onde. Cada um entendeu seu papel no processo ou viu onde podia ajudar e preencheu a necessidade, sem disputa de espaço.
- A preparação e gestão das pessoas – A vontade de ajudar não é suficiente. É necessário formação e cuidado sobre voluntários e todos os que fazem parte do processo também. Aqui também podemos falar de estilo de liderança e gestão, que influencia diretamente quando tratamos de pessoas.
- A relação com o poder público – o que fizemos, na realidade, seria de responsabilidade do poder público. Mas na falta, tomamos para nós, sociedade civil, essa responsabilidade. Porém, conhecer a responsabilidade das políticas e da gestão públicas e do nosso papel enquanto sociedade civil e cidadãos, foi fundamental. Assim como foi essencial compreender as instâncias do poder público e o relacionamento entre elas para que pudéssemos interagir de forma harmônica ou, mesmo, pressionar em favor de nossos Abrigados.
- A força da articulação em rede – essa articulação nos ajudou em diversos aspectos acima citados, desde na captação de doações a conseguir, em momentos críticos, parcerias para manutenção de serviços do Abrigo e atendimento aos nossos Acolhidos, por exemplo. Atuar em rede e em colaboração.
Talvez meus parceiros de coordenação tenham outros itens a acrescentar. Mas, agora, no calor da desmobilização, são esses os fatores que me vêm à memória.
Por que somos um exemplo para a gestão pública
Em Porto Alegre, não existe um espaço como o que a gente criou, com oferta de saúde integral, ou híbrido (como se diz tecnicamente), para pessoas idosas vulneráveis. No Rio Grande do Sul, até onde alcança meu conhecimento, não existe um espaço como o que desenvolvemos.
Somos o estado mais envelhecido do país. E não vamos “parar de envelhecer”, ao contrário. Este é um tipo de equipamento que precisamos construir em nossos municípios. Eu não gosto, mas acho necessário ser aquela pessoa chata que anuncia a tormenta: o nosso futuro é cada vez mais velho e com velhos cada vez mais vulneráveis. Quais gestores públicos irão trabalhar, finalmente, nesse sentido?
Números finais
Após 92 dias de existência, dia 30 de agosto, entregaremos o prédio vazio ao seu proprietário que generosamente nos emprestou, e ainda estamos realizando levantamento de muitos números e resultados deste período, mas já temos alguns preliminares que compartilho abaixo:
- Acolhemos 61 pessoas ao todo. Destes, com a ajuda de voluntários, doadores, madrinhas e padrinhos, 42 foram encaminhados para suas casas ou de familiares, com mobília, TV, geladeira, fogão, utensílios de cozinha, conjuntos de cama, mesa, banho, roupas, itens de higiene, limpeza, cestas básicas e, quando necessário, camas hospitalares, andadores, cadeiras de roda e de banho. Dez foram encaminhados para Instituições de Longa Permanência para Idosos – ILPI e cinco para Centro Humanitários de Atendimento – CHA, dois estão em hospitais, todos também com “kits boa sorte” específicos. Dois faleceram por conta de comorbidades já existentes.
- Na estrutura do prédio de quatro andares, com elevador, utilizamos 40 camas hospitalares, oferecidas pela Fundação Asilo Padre Cacique, com colchões doados pelo Colégio Farroupilha.
- Ao longo dos três meses, contamos com o trabalho de 250 voluntários, em 2.020 horas de voluntariado ao todo.
- Captamos em doações de pessoas físicas e jurídicas de R$ 156.019,94 reais em dinheiro utilizados para pagamento de equipe de saúde, equipe de limpeza, vigilância, aquisição de medicamentos, transporte de abrigados, voluntários e fretes.
- Utilizamos:
- 4.600 fraldas.
- 10.800 marmitas.
- 1,9 toneladas de roupas lavadas no Hospital Vila Nova, um dos nossos parceiros.
Do orgulho
Desde o nosso nascimento, norteamos nosso serviço humanitário pelos princípios do cuidado, do respeito à pessoa idosa, seu protagonismo e autonomia, garantindo seus direitos à saúde física, mental, social e espiritual e é com o orgulho desse dever cumprido que com alegria e agora, já com a dor da saudade, olho as salas vazias, sem gente e sem móveis, em absoluto silêncio. Agradeço a tudo o que contribui para este feito, a cada pessoa com quem me relacionei, cada minuto que passei, as muitas lágrimas que derramei dos mais variados tipos de emoção. Essa experiência transformou a minha vida.
Fotos: Acervo da Autora
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