Quem porventura entrar no Museu do Trabalho para visitar a exposição coletiva Pintura e Desenho – A Novíssima Geração V, com texto de Gabriela Motta e Luísa Kiefer, atravessando o conhecido vestíbulo e se aventurando na galeria principal, irá então se deparar com 31 desenhos apresentados de modo intrigante. Uma descrição que, embora um tanto antiquada, ainda conserva algo de verdade seria a seguinte: a sensação que se tem ao avistar de relance o trabalho Passagens (2021), de Marcelo Koetz, é a de que 31 janelas se abriram subitamente para mostrar, em sua peculiar elegância, o céu.
Os desenhos em pastel seco têm o tamanho aproximado de uma folha de ofício cujas bordas foram rasgadas. Cada um deles apresenta uma pequena cena do céu, com variações tonais de azul e inúmeras e sugestivas formas brancas figurando aquela diversidade característica das próprias nuvens. Em um desenho, o céu é mais acinzentado e fechado, noutro mais brilhante e quase convulsivo. Em outro, mal se vê o azul, pois ele foi escondido com uma fina camada de pastel seco e branco, como em uma sutil velatura sobre o campo de cor azulada. Um dos desenhos apresenta um conjunto de cirrus, aquelas nuvens fibrosas, finas e transparentes que se espalham pelo céu; noutro, o espaço pictórico é preenchido por uma rechonchuda cumulus e, ainda noutro, por uma stratus delicadamente esticada sobre a área de azul. Em toada baudelairesca, Koetz nos apresenta 31 paisagens atípicas nas quais a sua dileção pelo desenho encontra o tema celeste: “– O que amas afinal, fascinante estrangeiro? – Ah, eu amo as nuvens… as nuvens que passam… lá no alto do céu… as maravilhosas nuvens” (Charles Baudelaire, O Estrangeiro, In Pequeños poemas en prosa. México: Ediciones Coyoacán, 1995, p. 7). Da diligente, sonhadora e imaginativa observação do próprio céu, seus padrões instáveis e caleidoscópicos e sua transitoriedade climática, é que surgem esses pequenos desenhos. E a obra, como um todo, de fato nos convida para um exercício escópico no qual ficamos como que pairando entre o todo e as partes, o perto e o longe, as figuras e os relances cromáticos, feito estrangeiros debaixo do céu infinito, amando obsessivamente o impossível. Estranhar-se diante dessa obra é, talvez, o primeiro estágio de uma grande aventura.
Em Passagens (2021), cada desenho é diferente. E desde a escolha das cores ao método empregado para a composição do espaço, cada um dos desenhos oferece ao observador um enquadramento desnorteante em que a familiaridade dos arredores desaparece, soltando-nos diante dessas cenas enviesadas. Se, de longe, num relance, a sensação é de enxergar muitas janelinhas através das quais o céu se insinua de repente ao nosso olhar, então, bem de perto, a sensação é diferente, como a de olhar pela pequenina janela de um avião que atravessa as nuvens ou como a de, depois de ter girado muito ao redor do eixo do próprio corpo, olhar rápido e fixamente para cima, fazendo com que o campo de visão deixe para trás os registros do nosso entorno e se aventure na imensidão do céu sarapintado de nuvens. Pois bem de perto, os desenhos de Koetz nos convidam a mirar o infinito e a experimentar, ainda que de modo mediado pela inventividade artística, uma breve e contida vertigem.
De certo existirão outros modos de apreciá-los. E se, por exemplo, ousássemos enumerá-los ou contá-los, então, talvez, apresentar-se-ia, para nós, aquela oportunidade de enquadrar a discreta vertigem nos limites mais seguros da expectativa por exatidão, inaugurando também o instante em que a própria sensibilidade faz do encontro sensível a ocasião de uma autorreflexão essencial, não mais se resumindo ao seu próprio sentir. Poder-se-ia contá-los, primeiro, assim: de cima pra baixo, temos ao todo seis linhas; na primeira, vemos dois desenhos; já entre a segunda e a quinta, vemos sete; e, na última linha, apenas um. Mas, depois, também poderíamos contar os desenhos assim: da direita para esquerda, temos ao todo sete colunas; nas duas primeiras, vemos cinco desenhos; entre a terceira e a sexta, considerada uma mudança de nível, vemos quatro desenhos por coluna; e, na sétima e última coluna, vemos novamente cinco colunas, considerado um novo deslocamento de linha. Ainda que essas contagens, quando formalizadas, sejam conduzidas por equações diferentes, delas se desdobra uma mesma razão. São 31 desenhos, 31 unidades. O trabalho é, portanto, uma série.
Conforme escrevo sobre o trabalho de Koetz, descrevendo alguns dos modos peculiares de interação com ele – o arrebatamento visual ou a consideração conceitual – lembro-me de um trecho de Diário de um Ano Ruim, de Coetzee, no qual o interlocutor passa a debater, em suas opiniões, sobre o significado por trás do ato de contar, operação básica da aritmética, afirmando-a como uma invenção humana, engendrada pela nossa inventividade criadora e técnica.
“[…] a ordem que vemos no universo pode muito bem não residir de modo algum nele. A matemática que inventamos (em certa medida) ou descobrimos (em outra), na qual acreditamos ou sobre a qual depositamos a esperança de ser a chave capaz de nos abrir a estrutura do universo, pode muito bem ser uma espécie de linguagem privada – privada aos humanos com seus cérebros humanos – com a qual rabiscamos nas paredes da nossa caverna” (J. M. Coetzee, Diary of a Bad Year. New York, Penguin Group, 2007, p. 96).
Talvez a minha lembrança do trecho tenha se originado de um deslizamento pela cacofonia dos significantes (‘Koetz’ / ‘Coetzee’) ou, talvez, de um reconhecimento sobre o paralelismo que certamente existe entre esses anos ruins que se dilatam ou parecem se repetir. Mas a ideia de que Diário de um ano ruim é um diário atípico, onde distintos níveis narrativos, vozes (Señor C., Anya, Alan) e pontos de vista se desenvolvem em paralelo e, aqui e ali, entrecruzam-se, parece ser uma chave mais apropriada para a associação. Acontece que o trabalho de Koetz também se apresenta como uma espécie singular de diário.
Pois Passagens (2021) é um diário estranho em que as imagens registram a passagem dos dias, mostrando como dentro de um intervalo temporal específico poderão existir unidades ainda menores – exatamente como de uma linha se deduzem, no mínimo, dois pontos; e, no máximo, como dela chegamos às potencialidades infinitesimais que, séculos atrás, igualmente surpreenderam Zenão e sua tartaruga. Essa obra opera como um diário porque envolve, portanto, as ideias de contagem e de registro dos dias, mas sobretudo porque reinventa sugestivamente os modos de registrar e de contar. Diário é também aquilo que retorna todo dia e, a cada dia, em seu retorno regular, submerge-nos em familiaridade, naturalizando sua ocorrência e dissolvendo nossa capacidade de notar as repetições. Assim, na medida em que Koetz escolhe registrar, em seu diário atípico, as repetições, os deslocamentos, as permanências cotidianas a partir do tema do céu, então ele não só reinventa o modo de contar os dias, mas também cria parcimoniosos entraves para sua transformação numa familiaridade obsedante. Passagens (2021) opera uma reescritura, ou uma ‘reimaginação’, diária do cotidiano em que o ato de contar também se reinventa ao infinito.
Os 31 desenhos de Koetz precisam ser contados – ao menos inicialmente – porque não são apenas meros desenhos figurativos do céu. Em seu conjunto, ou em sua série, eles perfazem sobretudo um calendário peculiar no qual os dias não são mais contados por meio da trivialidade numérica que repousa sob a estrutura do algoritmo do n+1; mas sob a lógica idiossincrática que encaminha diferentes investigações estéticas interessadas pelo cotidiano, pela passagem dos dias, pela mudança das coisas e pelo desenrolar do tempo. Esse diário mensal não descreve discursivamente as ações, desejos e aspirações do artista em cada um dos muitos dias ao longo de um mês, mas apresenta um diligente exercício de observação e de tradução inventiva desses dias, indicando a potência do desenho como modo de fazer essa passagem. Cada um desses 31 desenhos é uma instância singular, numérica, na qual o trabalho metafórico e o trabalho formal vão aos poucos incorporando – e dando a ver – os contornos de uma unidade, bem como o regramento possível por trás de sua seriação pictórica. Enquanto resultados, ou causas finais, esses desenhos são, assim, fruto de uma contagem reinventada, revisitada. Desenhos que, juntos e ordenados nessa série, indicam-nos também a existência de uma estrutura mais geral que fundamenta o modo habitual através do qual nós, humanos, contamos nossos dias, apreendemos a passagem do tempo, dando-lhe sentido, e seguimos acreditando – eclesiasticamente – que deverá existir um tempo para tudo debaixo dos céus. Sobretudo um tempo para desenhar. E outro para contar, com devida calma, os próprios desenhos. A obra de Koetz é um calendário ao seu próprio modo; ao modo de um artista que, embora saiba que os dias passam mediante o truísmo numérico, ainda assim escolheu contá-los através da prática e da investigação do desenho.
O conjunto de desenhos que forma a série Passagens certamente apresenta singulares tensões entre figurativo e não-figurativo – entre a produção da representação, por meio da consciência de que toda figuração demanda um projeto imagético, e a produção da superfície, por meio da qual poderá se inaugurar aquele campo pictórico onde as questões formais estarão em jogo. E, dada a presença dessas tensões, as interpretações da obra poderão, de fato, curto-circuitar sobre elas; ora levando-nos ao reconhecimento exclusivo das figurações celestes ali presentes, ora ao reconhecimento de como um espaço pictórico qualquer adquire sua expressividade e autorreferencialidade a partir da operação formal sobre a cor e o traço. Dessas tensões entre figuração e superfície, ou entre o reconhecimento icônico e formal, desdobram-se questões que o próprio artista, em depoimento, avança, já tendo ele mesmo pensado sobre elas:
“Isso é um céu ou vários céus em dias diferentes? E é um desenho do céu picotado ou são vários desenhos diferentes? Mas o céu não é sempre o mesmo, em dias diferentes? E meus desenhos do céu não são sempre o mesmo desenho, que reaparece quando eu desenho o céu em diferentes ocasiões e em diferentes paisagens?”
Na medida em que se questiona sobre a natureza desse céu representado – perguntando-se se é ou não sempre o mesmo, se cada desenho é uma parte diferente do céu em um mesmo dia e assim por diante – então Koetz também avança um interessante ceticismo em relação ao seu próprio trabalho, abrindo as possibilidades de interpretação para aquele jogo imaginativo em que ficamos suspensos em uma densa atmosfera de hipóteses.
A imaginação, elevada ao posto de ‘rainha’ das faculdades humanas por Baudelaire, foi por ele celebrada justamente enquanto a capacidade de operar no limiar do possível, região em que o próprio verdadeiro é potencialidade. Ou seja, enquanto a capacidade de, suspendendo as determinações e limitações das imposições demasiadamente rígidas, vislumbrar o leque de possibilidade para futuros que se anunciam, para pensamentos recém germinados e expressões artísticas e estéticas ainda rudimentares.
“Foi a imaginação que ensinou aos humanos o sentido moral da cor, do contorno, do som e do perfume. Ela criou, no começo do mundo, a analogia e a metáfora. Ela decompõe toda a criação e, com os materiais reunidos e dispostos segundo regras cuja origem só nas profundezas da alma podemos encontrar, criou um mundo novo, produziu a sensação do novo. […] A imaginação é a rainha do verdadeiro, e o possível é uma das províncias do verdadeiro. Está positivamente aparentada com o infinito.” (Charles Baudelaire, A Invenção da Modernidade. Lisboa: Relógio D’Água, 2006, p. 158 e 159)
Sob aquela já mencionada imagem do estrangeiro amante das nuvens passageiras apresentada por Baudelaire, esconder-se-ia não só, portanto, a instância concreta capaz de exemplificar artisticamente a própria capacidade imaginativa humana, mas sobretudo o paradigma de seu desenvolvimento em nossas vidas infantis. É desse modo que por meio do tema celeste se recoloca, então, em uma dimensão filosófica e crítica a própria brincadeira de, diante das nuvens passando no alto do céu, procurar por nomes, termos, palavras e conceitos que consigam nelas designar a existência de particularidades figurativas. A operação com conceitos e o exercício de conceituação – isto é, o ato de incluir por meio da linguagem uma determinada coisa em um conjunto discursivo, identificando-a linguisticamente – são, portanto, genealogicamente explicados através dessa cena ou imagem prototípica, em que as crianças indicam nas nuvens distintas certas formas e figuras, dando-lhes nomes, atributos, qualidades e relações. Atividades pensantes que, a partir dessa instância lúdica e paradigmática, desempenhará uma função primordial em nossa capacidade de prestar atenção nas narrativas e de contar histórias na vida adulta. Quem, no entanto, recordar-se de ter participado, ainda criança, dessa brincadeira, também se recordará que o conceito atribuído a uma forma qualquer que vemos nas nuvens do céu é, quase sempre, um conceito transitório e passageiro. Tão logo a nuvem é identificada como um pássaro, um gato ou um cachorro, o vento sopra e essas formas perdem as qualidades que lograram sua identificação, exigindo que a brincadeira continue ou recomece; desencadeando, assim, o infinito imaginativo. A mutabilidade, a instabilidade, a configuração sempre passageira e a infinidade sugestiva são, portanto, apreendidas desde aí – desde as brincadeiras infantis – como traços fundantes de um senso de possibilidade que, bem mais tarde, virá a fundar em nós a própria faculdade imaginativa e sua interminável capacidade de abertura ao possível.
Vejo, nesses desenhos singulares de Koetz, algo muito similar ao que se encontra no intertexto dos muitos elogios baudelairescos à imaginação: o interesse pela exploração do possível, as investigações sobre nossa capacidade imaginativa, o amor à infinita plasticidade das nuvens do céu enquanto paradigmas da transitoriedade e da singeleza cotidiana. Mas também vejo a exemplificação da noção de imaginação, presente nas estéticas setentistas, como aquela faculdade epistemológica que nos permite conhecer as coisas por meio de imagens.
Para além dos elementos já mencionados da seriação, das tensões entre figurativo e não-figurativo, da profundidade metafórica do tema, também vejo neste calendário estranho que é Passagens (2021) o desenvolvimento de um jogo no qual os elementos conceituais e pensantes, junto da figuração e da autorreferencialidade, passam a desempenhar papel proeminente. Porque é como se Koetz estivesse ao mesmo tempo reconhecendo que embora os seus desenhos sejam aquelas instâncias através das quais se torna possível trabalhar com a ideia de uma infinidade celeste, ele igualmente reconhece que essa tradução do infinito se perfaz sobre a delimitação ardilosa – e finita – do próprio suporte e da própria figuração. Koetz faz, em Passagens (2021), uma passagem literal do infinito ao finito. Mas também faz uma passagem do finito da figuração e do suporte, ao infinito conceitual pela montagem.
Se, por um lado, o céu infinito é traduzido em termos finitos e humanamente apreensíveis por meio do desenho, então, por outro lado, é justamente através do processo de rasgadura das bordas do suporte e da montagem seriada de cada um dos 31 desenhos que Koetz passa, agora, do finito ao infinito – resolvendo assim a tensão ao nível conceitual e filosófico inicialmente incorporada no trabalho. Através da rasgadura e do suporte ele restituí ao céu a potencialidade infinita que havia sido antes limitada ao desenhá-lo dentro das fronteiras circunscritas pelo suporte pictórico. É na montagem e no pensamento incorporado do desenho em seu contexto expositivo que, portanto, essa obra alcança novos delineamentos conceituais, convidando-nos a ver aquilo que está na e também para além da exploração pictórica. Por meio dessas passagens sucessivas – infinito ao finito, finito ao infinito, de um dia ao outro, do perto ao longe, de uma figuração a outra – é que Koetz vai também, ao seu modo singular, reescrevendo e reinventando o cotidiano, dando-lhe outra cena, outro destino, mostrando-o sob outra roupagem.
Em Jogo de Memória (2021), outra série de desenhos, Koetz igualmente coloca em prática sua dileção pelo que, conforme afirmou Perec, “[…] acontece a cada dia e que sempre retorna; o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual” (Georges Perec, Aproximações do quê?, 1973). Pois Jogo de Memória (2021) é um conjunto seriado de desenhos feitos sobre filtros de café usados, afixados na parede, e apresentado junto de xícaras, bule e um armário de cozinha em cujas pequenas gavetas se encontram as próprias notas fiscais dos produtos desenhados. Recortando o espaço afetivo de uma nova casa e, dentro dela, uma nova rotina, Koetz recupera esses objetos do esquecimento cotidiano e os transforma, por meio da contagem poética e artística, em diminutas cenas que permitem narrar essa vida, reescrever esses dias, reimaginando-os. Frente ao destino entediante da domesticidade e da familiaridade, ao qual estamos todos estruturalmente fadados, Koetz nos indica caminhos alternativos para singelas insurgências.
Em um dos muitos filtros, bananas; noutro, a manteiga entreaberta para o café da manhã; noutro, o pacote de café com seu perfume característico; e noutro, a esponja da pia, em três quartos, repousando em uma sombra úmida. São delicados desenhos em pastel oleoso que não se limitam mais ao enquadramento pictórico, ou se confinam ao suporte oriundo do contexto cotidiano. Mas que, através de uma instalação que ambienta o espaço expositivo, ampliam e tornam porosas as fronteiras entre mundo da arte e mundo ordinário da vida.
Se a partir dos anos 60 uma certa invasão da vida cotidiana, seus contextos e lógicas, passa a se processar dentro do que se acreditava ser a esfera fechada e autônoma da arte, mudando com isso sua própria compreensão e identificação do artístico, então agora, passados muitos anos dessa insidiosa invasão ampliativa, começamos a ver o contrário. Ou seja, as influências recíprocas e os entrecruzamentos entre esses mundos à luz de uma total heteronomia. A lógica da própria arte, com seus modos peculiares de habitar e investigar o mundo, passa também a influenciar a nossa vida, incentivando reescrituras, revisitações, sugerindo outros hábitos, outros modos de contar os dias, experimentá-los e descrevê-los.
Como se a imaginação, secularmente trabalhada por uma longa tradição artística e filosófica, estivesse agora a voltar-se, a contrapelo, sobre a nossa própria vida, saturando-a, desalienando-a, abrindo-lhe inúmeras possibilidades. Que essa aventura comece endereçando o fugidio do cotidiano, presente nos filtros de café, na observação meticulosa das repetições e coincidências ou, então, nos relances de uma nuvem passando ligeira sobre o céu, é tudo uma questão de aprendermos a dedicar à vida, agora, aquela mesma paciência e diligente atenção que dedicamos às artes há tantos séculos. E tudo começa, talvez, ao afastarmos de leve as cortinas do familiar, ousando espiar toda a cena que se insinua por trás delas:
“Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que
os ares me beijavam.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.”
(Ana Cristina César, Fagulha, in Poética. São Paulo: Cia. das Letras, 2012, p. 153 e 154)