No começo foram certos livros, que condensaram de forma concisa e objetiva diretrizes para o atingimento da felicidade por parte de todos e todas os interessados em sair da pasmaceira cotidiana e darem um “upgrade” nos projetos de vida, nas posturas, nas perspectivas. Ensinamentos voltados para uma gama extensa dos desafios de “performar na contemporaneidade”, desde a gestão dos orçamentos domésticos, em direção ao Shangri-La do “primeiro milhão”, até a superação de perebas psíquicas ligadas à timidez e dificuldade de “falar em público”, dificuldade de conseguir parceiro(a) afetivo(a)/sexual para chamar de seu/sua, medos, terrores e fobias, rumo ao atingimento, enfim, de um patamar de protagonismo psicossocial e (suposta) higidez mental que desse à pessoa aquele misto de satisfação de vencedor, aquele queixo pra cima de quem turbinou a autoestima. Com o advento contemporâneo das plataformas digitais, os livros migraram do suporte papel para as telas portáteis, e o formato livro se manteve, mas se ampliou para as redes de “desenvolvimento pessoal” abarcando todo aquele que quisesse se juntar a quem decidiu “avançar”, “desenvolver capital humano”, “adquirir visibilidade”, “prospectar e desenvolver habilidades e competências”, e por aí vai, tudo mediante “investimento” pecuniário a ser debitado do cartão de crédito do candidato ao empoderamento…
Três aspectos me causam estupefação em meio a essa movimentação. O primeiro diz respeito à crença de que mudanças do porte acima referido sejam atingíveis a partir da prescrição de listas de “dez passos”, programa de “metas e submetas”. A crença de que MUDAR decorre da gestão de aspectos em termos cognitivos (entender o fundamento das metas estabelecidas) e comportamentais (agir em conformidade, adotar regras como “não protelar”, e por aí vai). Devo aqui dizer que a própria Psicologia tem responsabilidade quanto a isso, pois muitas de suas correntes contemporâneas vão justamente nessa direção. Segundo, a crença, diretamente vinculada à primeira, de que as questões de que estamos falando começam, terminam, se resolvem NO e PELO indivíduo. VOCÊ é o responsável pelo seu sucesso, pelo seu fracasso e pela construção dos caminhos para um e para outro. Você é sua fonte de capital (as tais “competências e habilidades”), você é sua própria SA (sociedade anônima). Terceiro, a monetização/precificação desse fenômeno de “autoajuda”, a começar por um pequeno adendo: trata-se de autoajuda sob supervisão, sob aconselhamento, sob “coaching” de um especialista (?) externo, mediante “investimento” de valores totais elevados, por qualquer critério que se avalie. Agregado a esse terceiro ponto, a constatação do tanto de pessoas que vão… pagar! (E, do tanto, dentre essas pessoas, que eventualmente vão espernear pela constatação do logro em que eventualmente se meteram).
Não, mudanças que abarcam a estrutura da personalidade não decorrem centralmente da aceitação meramente racional de princípios adequados. Quantos daqueles e daquelas encalacrados em dívidas desconhecem que a soma das despesas não deve ultrapassar a soma do disponível? Quantos ignoram a falta de fundamento de suas fobias e sofrem duplamente a fobia e a incapacidade de se livrar dela a partir do conhecimento de sua falácia? Obter a explicação precisa e detalhada das próprias penas não é suficiente para atenuá-las ou afastá-las. Insistir nisso, da parte do apenado, é no mais das vezes ingenuidade, e da parte de quem oferece esse “guia”, esse aconselhamento, falta de apuro técnico ou mesmo má-fé.
Não, a esfera do individual não esgota grande parte das explicações para tudo de bom e de ruim que nos acontece. “Eu sou eu em função de um tu”, escreveu o filósofo alemão Martin Buber. Indo mais adiante, a meritocracia, numa sociedade injusta na base, é um engodo. O “sucesso” de uns e de outros, numa tal sociedade, não se limita a seguir a cartilha de boas prescrições, mas tem muito a ver com a classe social, com a inserção étnico-racial de cada candidato a “vencedor”. Cada uma e cada um vive numa estrutura mais ampla cuja desconsideração vai da ingenuidade do crente à cegueira ideológica dos diversos guias.
Tudo nessa sociedade tem um preço, dizem por aí. “Não existe almoço grátis”, é um dos mantras da contemporaneidade. Melhor pagar uma plataforma de autoajuda que promete a ajuda em tempo pré-estabelecido do que um profissional tradicional de saúde mental (muitas vezes bem caro) que nem sequer aceita estabelecer prazo de “tratamento”, ousando às vezes cobrar caro por um silêncio atroz… Faz sentido. Mas o que de fato o demandante de um programa nestas plataformas está efetivamente comprando, quando aciona seu cartão de crédito? Como é possível que se aceite pagar tanto por doses de senso comum prosaico? Como se aceita pagar tanto por frascos de saúde mental prêt-à-porter, quando cabe a cada um encarar seu monstro, lidar com ele, fazer seus acertos possíveis?
O sofrimento, o desalento, a sensação de inadequação e de fracasso são crescentes nessa sociedade. A busca de alívio é compreensível e precisa ser respeitada. Já a iniciativa de surfar nessa onda, não. Os “dez passos para salvar seu casamento”, olhando de perto, são (pelo menos alguns) pertinentes. Dão aquela sensação de déjà vu (é inevitável, posto emanarem no mais das vezes do senso comum mais para-choque de caminhão possível), mas, vá lá, têm sua pertinência. O problema maior reside na desconsideração de outra frase de para-choque de caminhão, que ouvi pela primeira vez de minha finada mãe, e que dizia: “Ai de quem pensa que o céu é perto”. Não é. É na vivência, em interlocução com o OUTRO, em contexto social real, que cada um dos dez passos de salvação do seu casamento fará o devido sentido, surtirá o devido efeito (pois o céu é alcançável – terminemos com esse registro otimista!). Ou não…
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