Com trinta anos de atraso, escrevo aqui um acerto de contas.
Eu tive a sorte de viver boa parte da minha infância no interior do Rio Grande do Sul, o que me permitia os passatempos e brincadeiras de rua. Fui daqueles que tinham uma “turma da vizinhança”. Era uma época bem antes de popularização da internet, então realmente a rua era o cenário em que se davam os laços de amizade, as primeiras paixões e desilusões amorosas, as relações de companheirismo, enfim: a rua era o mundo.
Nesta época, eu andava muito com um amigo que também, ao mesmo tempo, era um desses rivais de infância que todos temos. Com ele, toda brincadeira logo se tornava uma competição. Os “comandos em ação”, inicialmente membros da mesma tropa, logo passavam ao fogo amigo e viravam a casaca. Era dessas amizades que nos constituem pelo contraste, na aposta de que a agressividade é um modo de reconhecimento pela diferença.
Pois bem, caro leitor, uma das nossas brincadeiras favoritas era andar de bicicleta – como acontecia com quase toda criança daquela época, aliás. Depois de circularmos pelo bairro, nós nos separávamos do grupo e íamos para uma pista de corrida improvisada, um chão batido em formato circular em um terreno baldio. Ali, apostávamos corrida. Como eu era um pouco mais velho, eu quase sempre vencia a corrida.
Mas as coisas não eram assim tão simples.
Em certa altura, acabei tendo o famoso “estirão de crescimento” e passei a correr bem mais rápido do que ele. Foi então que passei a ganhar as corridas com grande vantagem, o que fazia como que, várias vezes, eu estivesse uma volta a mais à frente dele.
Certo dia, lembro de ele ter começado a usar uma estratégia muito “curiosa” (pra não dizer perversa): quando eu estava ganhando de lavada, deixando-o uma volta atrás, ele cruzava a linha de chegada, parava a bicicleta, punha as mãos para o alto e gritava: “Ganhei! Sou o vencedor!”. Ou seja: se alguém tirasse uma foto daquele exato instante, suporia que ele havia realmente ganhado, uma vez que não tinha acompanhado o histórico da corrida e visto que eu tinha imprimido uma volta de vantagem, na verdade. Ele havia atravessado a linha de chegada que eu já tinha cruzado antes.
Eu ficava profundamente angustiado porque não tinha ninguém ali para ver o que estava acontecendo e servir de árbitro daquela disputa. Ainda que tivesse ganhado, eu voltava para casa com um gosto amargo de derrota. No dia seguinte, ele bradava a todos os nossos amigos que, mesmo ele sendo menor, ainda assim tinha conseguido me ganhar na corrida. Os amigos compravam a mentira e tinham ele como um grande herói.
Acho que esta foi a minha primeira experiência de fake news da vida.
Sinto que algo parecido aconteceu no domingo retrasado. Lula venceu o primeiro turno com 48,43% dos votos válidos, contra 43,20% de Bolsonaro. Mesmo assim, foram os bolsonaristas que ergueram os braços em sensação de vitória.
O que temos visto, especialmente nos nossos círculos mais próximos, é uma esquerda que está se sentido derrotada e agindo como tal, ainda que os números digam o contrário.
Sim, entendo que esta percepção se deva ao percentual muito acima do esperado de votos em Bolsonaro e, especialmente, à forma como o bolsonarismo foi se capilarizando e tomando conta do congresso e do senado, o que tornou o Brasil um país praticamente ingovernável pelos próximos anos. A percepção é que, mesmo que vençamos no segundo turno – e tudo leva a crer que vamos vencer -, a nossa vitória será celebrada mais com alívio do que com alegria, com aquele mal-estar de saber que, mesmo vencendo, teremos tempos duros pela frente. Vai ser uma vitória “ressabiada”, como se diz no interior.
Talvez o que estejamos só agora percebendo é que as fake news não são mentiras, mas sim a construção de uma realidade paralela. O problema é que, assim como meus amigos de infância, muitos brasileiros “compraram” (às vezes, literalmente) essa realidade e fizeram dela a verdade em que habitam. E não foram poucos: segundo as urnas, foram 43,20%, ou seja, mais de 4 a cada 10 cidadãos.
Por isso eu tenho insistido na ideia de que não estamos mais no campo de discutir propostas éticas e morais, mas de disputa pelo que entendemos como realidade. E esta talvez seja a primeira vez em que nos deparamos com este problema: até então, a realidade nos servia como aquele árbitro de que eu sentia falta na disputa com meu amigo, aquele agente de fora que viria restaurar a justiça. Entretanto, quando a própria realidade está em questão, mesmo a narrativa mais cabulosa pode ter consistência de verdade, basta que as pessoas passem a performar ativamente esta versão compartilhada e a tomem como referência. Até mesmo eleitores de esquerda têm caído nessa.
Tomar como mentira as fake news pode ter como efeito colateral não estar atento ao quanto a realidade com a entendemos é moldada e organizada a partir do nosso desejo, ou seja, que o que chamamos de “real”, muitas das vezes, é uma imposição do nosso próprio autoengano sobre o mundo. Novamente, mas dito de outra forma: quando este engano passa a ser não mais “auto”, mas coletivo, estamos frente a uma realidade que deixa de se colocar como resistência à ilusão e que se apresenta como o palco mesmo em que este engano ganha forma e autenticidade.
Por isso que não tenho me afeiçoado tanto aos discursos neoliberais desavisados de “superação” ou de “chore agora e depois erga a cabeça e vá à luta”. Ainda que estas falas possam ter um efeito importante de resguardo da esperança, não acredito que só com esperança a gente vá conseguir restaurar a realidade como nós a conhecíamos. Acho que, em vez disso, pode ser muito mais interessante um movimento que conjugue o pessimismo com a indignação, que jogue com as mesmas armas (a metáfora bélica é incontornável) que os bolsonaristas.
Creio ser necessária a tristeza suficiente para elaborarmos o luto de um Brasil que nunca mais irá retornar, aquele país promissor dos anos 2000, governado por um presidente atento às dores históricas que foram constitutivas da nação. Esta realidade está perdida e, com isso, surge o risco de idealizarmos este país do passado e esquecermos que o Brasil ainda precisa ter um futuro. Portanto, além da tristeza, tenho apostado no valor da indignação que nos permita dizer que não, eles não venceram o primeiro turno. Uma indignação que nos dê forças não para restaurar o que supomos perdido, mas para performarmos uma realidade em que nos reconheçamos como vitoriosos.
Uma realidade em que, concretamente, estamos uma volta – ou um turno – à frente.