Impossível estar em uma Feira do Livro e não abrir a minha fala ratificando a importância dos livros, da leitura e das histórias que ouvimos. Romances que acendem a imaginação e revelam tantas outras vidas e tantos outros universos. Relatos que falam de pertencimento, de identidade e de raízes, fundamentais para ampliar horizontes, entender o movimento da nossa aldeia e o movimento do mundo. Livros abrem portas, revolucionam, inquietam, distraem, pacificam, provocam a reflexão. Ler é abrir janelas para dentro e para fora. Só tenho a agradecer aos organizadores da XII Feira do Livro de Jaquirana por me levarem até a minha terra como patrona da Feira. Foi em Jaquirana que abri os olhos para a vida, encarei os primeiros desafios e ensaiei voos para além do ninho familiar. Foi em Jaquirana que ouvi rádio pela primeira vez e tive o primeiro contato com jornais e revistas, estimulada pelo meu avô materno, Juvenal Lopes, e pelo irmão dele, Hortêncio Lopes, que chamávamos de tio Tencinho.
Foi em Jaquirana também que ao chegar à escola no primeiro dia de aula, lá pelos seis anos e pouco, ouvi alguém gritar “olha uma anãzinha!”. Desde a infância sou curiosa, mas neste dia o medo abalou minha curiosidade. Voltei para casa chorando sem entender o que acontecia. Naquela época, eu não sabia da minha condição e, por não saber, não dava importância e não falava sobre isso. Minha irmã Marlene também tinha nanismo e a família lidava muito bem com a situação. Não nos proibiam de nada e nos tratavam com naturalidade.
No nosso roteiro estava viver a vida e desvendar o mundo
Só mais tarde Marlene e eu encaramos a nossa condição física, o nanismo e as dificuldades inerentes, a estranheza que provocávamos e o preconceito que nos cercava. Bem jovens, descobrimos o gosto pela leitura e pela escrita, o que certamente impulsionou minha irmã para o curso de Letras e eu para o Jornalismo. Escrever e falar sobre inclusão, acessibilidade e deficiência foram maneiras que encontramos no caminho para lutar por respeito e dignidade. Percebemos que era fundamental reagir aos olhares capacitistas, que se recusam a ver talento em uma pessoa diferente e tentam tirá-la do cenário. Encontramos força e salvaguardas na arte para resistir, apesar das adversidades do cotidiano porque a discriminação dói. E carrega um não avassalador. Afronta nossa sensibilidade e inteligência, nosso desejo de acolhimento. Nossas vidas são indesejadas? Por quê?
A palavra superação nunca coube no meu cotidiano
Na maioria das vezes, os espaços só se abrem se a pessoa com deficiência assume um protagonismo qualquer e vira exemplo de superação. Passa a ser aceita, como se sua existência só tivesse sentido a partir desse protagonismo. Nada mais. Mas não há o que superar. E a palavra superação nunca coube no meu cotidiano. Meu desejo é viver tranquila com a minha condição. Quase ninguém vê a singularidade de uma pessoa com deficiência que transpõe infinitas barreiras físicas e sociais todos os dias. Em especial o olhar do outro que te vê como sub-humano, impulsionado pelo olhar de uma sociedade despreparada. O que realmente esses olhares fazem por nós, a não ser nos depreciar? O que entendem por inclusão e acessibilidade? Quem está preocupado com estas questões? O que pensam autoridades, governos, engenheiros, arquitetos, educadores?
Fora do institucional, há muitas organizações trabalhando e refletindo sobre situações que marginalizam quem não corresponde ao padrão, mas as frestas do cotidiano, segundo a filósofa Djamila Ribeiro, autora do livro “O que é Lugar de Fala?”, são violentas. Precisamos estar atentos ao que escapa por elas. Qual é o nosso lugar de fala hoje? Quem nos ouve? Quem conhece a Lei de Acessibilidade e Inclusão? A invisibilidade é real, apesar de nossas tão suadas lutas e conquistas.
O preconceito autorizado vai se alastrando. Diante desta realidade, precisamos respirar fundo. Não podemos perder a possibilidade de fazer o mundo avançar, ampliando os horizontes na convivência com as diferenças. É na diversidade que libertamos nossos olhares e fazemos as vozes ecoar. É na diversidade que está a grande riqueza humana.
Só através da educação e da cultura, na convivência com o outro em casa, na escola, na rua, é possível espalhar esta riqueza e criar pessoas sensíveis que olhem com naturalidade para a diferença
Não somos regidos pela excelência. Não estamos em competição. Não somos heróis, nem heroínas, nem vítimas. Reconhecemos nossos limites e possibilidades (todos temos limites e possibilidades!) e vamos ajustando o cotidiano a partir da nossa singularidade. Não queremos compensação. Não queremos ser exemplo de nada. O que buscamos é viver sem risos e piadas debochadas, dedos apontando, mãos que nos tocam de qualquer jeito, perguntas infames, imitações ridículas, olhares piedosos e constrangedores. Esta é a luta que assumi desde que comecei a conviver com pessoas cegas, pessoas que andam em cadeira de rodas, pessoas surdas, pessoas com síndrome de down, autistas, pessoas marginalizadas pela cor da pele e pela condição social. Aprendi e aprendo muito nesta convivência que me transformou em um ser humano muito melhor. Ver com olhos livres é libertador!
Para encerrar, um pequeno texto/poema de Altair Sousa, um mineiro estudioso da linguagem, da escrita, da educação e da psicanálise, que conheci na rede social:
“Tantas vezes precisamos sair das nossas peles
Pra podermos enxergar as entranhas existenciais do outro
Todo mundo é um emaranhado de vivências.
A alma humana é como um rio de águas turvas
Há oxigênio, há peixes, há plantinhas, há pedras
E pode de haver até jacarés.
Existir é rio e é a sede”.
O recado que quero deixar é – vamos sair das nossas peles. Vamos deixar a água fluir e nos banhar. Vamos saciar a nossa sede e dividir nossos saberes, solidários e humanos.