Quando se quer dar a entender a subjetividade de grupos minorizados preciso abrir este texto com uma frase de Walter Benjamin, onde ele convoca que para se perceber o jogo da dominação e se construir uma visão crítica, anti-hegemônica, se rejeitando as possibilidades de silenciamento de memórias e impacto nas subjetividades é preciso “escovar a história a contrapelo.”
Pensar dói. Refletir dói. Mas liberta. Transforma. Abre possibilidades. Se pensar, se localizando em uma estrutura social abre um universo de entendimentos que começam a trazer explicações para questões cruciais que se encaradas, somente pela perspectiva individual, perpetuam a crueldade de um não lugar no mundo. Um dos efeitos mais nocivos e desejáveis no caso do racismo no Brasil. Não ter lugar, não pertencer, ter sua existência recorrentemente invalidada a partir de acessos proibidos simbólicos e materiais.
Na coluna passada falei do discurso: Somos todos humanos. Ou as conversas nas redes sociais sobre o “dia da consciência humana”. Na mesma semana na qual os investimentos e eventos se encolheram para ações de conscientização e afirmação da identidade negra, um deputado federal vai a público contra o feriado da consciência negra com uma frase nazista fechando seu discurso; uma mulher negra é assassinada grávida, pois o seu namorado branco não queria um filho negro; uma senhora de 85 anos baluarte da Portela é acusada injustamente de roubo no aeroporto; uma menina viraliza na internet dizendo que é feia, mas pelo menos não é negra; e uma influenciadora, mãe atípica de um menino autista, ao fazer seu relato sobre as dificuldades de lidar com a situação e pedido de ajuda, é mandada trabalhar. Porque, neste caso, parece que o peso e dificuldades do convívio com a neurodiversidade só é permitido a pessoas brancas.
E eu poderia fazer um elenco de relatos, mas o que quero destacar aqui é a produção de subjetividade e da concepção de biopoder de Foucault, para podermos examinar os EFEITOS do “racismo” que é assumido, mas negado enquanto pratica no Brasil.
Vamos entender a subjetividade como formas de viver que podem ser prescritas e proscritas, que podem ser tanto individuais quanto coletivas, mas também podem ser singulares e experimentar novos territórios de existência. A subjetividade é algo modelado, produzido por processos coletivos, institucionais, sociais, que atravessam os indivíduos. Produzir subjetividade tem valor estratégico, pois permite que se instaure, se legitime e se reproduza. Dissociar isto dos meios de poder é travar uma guerra de Davi contra Golias. Talvez por isso eu tenha abraçado a comunicação, pelo seu poder de estabelecer uma disputa de subjetividades.
Outro vídeo que está viralizando é o de Conceição Evaristo, revelando que não se espera que uma mulher negra escreva, pense, conte suas histórias, crie outras narrativas. Porque o que se espera de uma mulher negra é o desenho do imaginário racista: servidão, arrumação de casa, corpo, dança, e eu ainda acrescento a servidão sexual. A escrita a partir das nossas visões histórias podem mostrar esta “história em contrapelo” que Benjamin convoca, e pode também inspirar vidas para mudanças e outros parâmetros.
Tenho procurado muitas referências para a minha escrita. Uma escrita que se nega a entrar por um caminho do mainstream de autoajuda ou de narrativas de consenso. Desejo uma escrita autoral que retrate os dilemas, a trajetória e a revolução de ser uma mulher brasileira com o propósito de ocupar tudo que lhe é negado pelo sistema. Minha matéria prima são minhas vivências e como elas escancaram, chocam, criam incômodos. Tudo por unicamente eu buscar viver o que a subjetividade do racismo exclui: humanização e bem viver.
Uma das referências que encontrei foi Edouard Louis, considerado o enfant terrible que transita entre a autobiografia e o ensaio. E tem uma frase que amei dele: “Não se deve ver o que escrevo como a história do nascimento de um escritor, mas do nascimento de uma liberdade, da ruptura a qualquer preço, com um passado detestado.” Edourd é da linhagem da literatura francesa, que nascidos em classes populares, fazem da mobilidade social uma narrativa coletiva de politização e até mesmo de vingança trazendo seus recortes entre as feministas, os autores LGBTQI+ e autores negros imigrantes. Admiradores de Annie Ernaux.
E nesta busca da minha escrita tive um insight após voltar de viagem, de escrever para vocês sobre os acessos proibidos pelo racismo no Brasil. E o primeiro deles é o amor. O amor em todas as suas dimensões. Pois os discursos de ódio se avolumam frente a um contexto apocalíptico de revelações, no meio desta transição planetária. Mas o que quero dizer com isto? A negação do amor é um dos efeitos do racismo. O amor como vivência plena.
Voltei da viagem e não entrei no assunto por aqui. Mas uma das perguntas que mais recebo é: “E como ficou seu amor com o Rana? Como foi o encontro de vocês?” Então vai lá a resposta: foi decepcionante. Envolto em suas crenças culturais e de que não podíamos ter um futuro. Ele ainda me procurou no meu hotel lindo e caro desejando uma noite de sexo. E eu simplesmente disse: este lugar eu não quero pra mim. Este lugar, mesmo que seja de Eros, em meio a minha queda e a minha vulnerabilidade, eu decido que não quero. Eu tenho as rédeas da minha vida. E mesmo contraditório pela minha apologia à liberdade e acreditar em momentos, foi uma recusa a um papel efeito do racismo que fez a razão falar mais alto. Até o sexo para mim é uma afirmação politica. Segui a minha viagem com outro encontro de amor: o amor próprio.
Na volta no avião vim assistindo um filme romântico: “Como eu era antes de você”. E as minhas fichas caíram todas. Com certeza eu não era mais a mesma depois de duas estadas em Paris e cheia de novas vivências. O amor ainda é um lugar de acesso proibido, mas muito mais próximo agora, pois sei como ele é.
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