Não sei se posso chamar de crônica ou conto. Mas como falei recentemente da importância da memória, ao mexer em uma pasta de guardados dos anos 1980 encontrei alguns textos que escrevi não sei exatamente com que objetivos. Ainda vivíamos sob a ditadura militar no Brasil, que foi devastadora, mas a possibilidade de uma transição estava no ar. E os escritos encontrados agora soaram como uma espécie de desabafo, de um grito de alerta, desejo de liberdade, enfim. Um novo tempo estaria a caminho mesmo? Como? Que sinais apontavam para a mudança? Poderíamos confiar?
Vamos à primeira crônica.
Se tem que ser, que seja!
Nem tudo estava tão certo naquela tarde fria aparentemente serena e azul. Qualquer coisa mexia e remexia por dentro, feito um bicho que se debate no interior de um vidro, numa última tentativa de liberdade. Feito um pé num sapato apertado. Um cisco no olho. Formigamento. Angústia.
Andava de um lado para o outro. Estonteada. Perdeu a conta das vezes em que virou e revirou o disco, que nem ouvia, no aparelho de som. Roia e olhava as unhas. Nervosamente. Entre uma tentativa e outra de respirar. Na realidade, externamente nada estava fora de lugar. As vinte e quatro horas do dia corriam normais. Precisas. Logo, alterar os ponteiros do relógio ou dos passos não seria mesmo uma solução. Que outro jeito, então?
Lavou o rosto mais uma vez e examinou seu perfil por mais alguns segundos no espelho do quarto. Tanto cansaço. Na pele, nos olhos, na vida. Sacudiu a cabeça, os ombros, o pó. Passou um batom rápido. Pronto, se tem que ser que seja agora! Pegou a bolsa. Verificou se a casa estava bem fechada. Conferiu o gás. Desligou o toca-discos e foi caminhando corredor afora em direção à porta da rua. Mas havia outras portas. Instintivamente, cantarolou a música “Gothan City”, de Jards Macalé e Capinam, dois malditos que, na época, ousaram desafiar o coro dos contentes.
“Cuidado, há um morcego na porta principal / Cuidado, há um abismo na porta principal”.
Para além das portas, cruzando a rua serena e azul, mexida e remexida, no centro do burburinho, mais parecia um ser em contramão. Ia, enquanto todos vinham. Ou paravam no meio do caminho. Instintivamente, lembrou o poema de Carlos Drummond de Andrade – “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra”. Seguia. E se debatia. Já não apenas interiormente. Agora tudo era muito visível. A certeza de que nada andava bem era evidente. E ela esperneava exausta entre as pedras e os braços cruzados. Cabeça, tronco e membros em ação. Pernas ao infinito, apontando para o morcego na porta principal.
A rua parecia não ter fim. E ela andava repetindo como um mantra: Se tem que ser que seja agora! O tempo esgotou. Instintivamente repetiu inúmeras vezes os versos da canção “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.
“Eu vou / Por que não, por que não? / Por que não, por que não? Por que não, por que não?”. E foi!
E no momento em que eu finalizava este texto fiquei sabendo da morte de José Celso Martinez Correa, diretor, ator, dramaturgo. Um anarquista maravilhoso, que desafiou a repressão durante a ditadura militar e revolucionou a arte ao criar, com vários parceiros, o Teatro Oficina. Salve Zé Celso! A revolução que ele fez no palco e fora dele me impulsionou a não silenciar diante de quem queria calar a nossa voz, a nossa arte.