Aproximadamente 1/3 de minha vida foi passada sob uma ditadura que provocou danos emocionais importantes em minha família. Aliás, não precisa ser historiador de profissão para perceber que nossa história republicana foi marcada e pontilhada por golpes – e suas tentativas – contra a democracia: 1889, 1891, 1937, 1945, 1954, 1961, 1964, 1967, 1968, 1977, 2016, 2023… Ou seja: o Brasil é um curioso país que tem 5 estações: Inverno, Verão, Primavera, Outono e Golpe contra a Democracia!
No ano passado, comemoramos os 40 anos da grande campanha pelas “Diretas já!”, com os grandes e mobilizadores comícios que tomaram as praças do país e arregimentaram movimentos da sociedade civil em uma frente que terminou por inviabilizar a continuidade política da ditadura.
É verdade que temos razão – depois do 8/11 – de comemorar aquele evento cívico de 84. Mas antes de festejarmos a Democracia, precisamos nos interrogar por que ela provoca tanto ódio, ao ponto de que países com tradição republicana e instituições democráticas sólidas estão vivendo (ou revivendo!) a emergência de grupos políticos de ultradireita (Estados Unidos, França, Alemanha, Bélgica, Itália, Portugal, Holanda…). Arrisco algumas hipóteses (que vão além do banal “ódio aos políticos”, ou à “política tradicional” protegida por “imunidades e foros privilegiados”).
A Democracia – não custa repetir – não é mais um regime político: é o regime que permite a existência da política, quer dizer, onde os indivíduos (e a democracia nos convoca a ser “indivíduos”), que não devem estar submersos na “massa” (paraíso dos populistas) e que podem se levantar no meio da praça e dizer “- Eu discordo!”, e nem por isso ser preso, perseguido, torturado ou morto, e poder confrontar seu ponto de vista com o dos outros.
Ocorre que a Democracia é aquele “lugar” da incerteza (nunca saberemos onde termina aquilo que a Democracia começa e decide: Hitler foi eleito!), e onde todos os pontos de vista podem ser contestados, perturbando a “ordem”, a “hierarquia”, a “tradição”, a “autoridade”. Quer dizer, o preço da liberdade (de expressão, de organização…) é a aceitação da emergência eventual do recalcado social, aquilo que precisamos reprimir para supostamente construir a cultura e a civilização (a tese de Freud no “Mal-estar na civilização”): gêneros, identidades, individualismos, consumismo patológico, novos investimentos subjetivos… colocam de volta na arena o dilema entre uma liberdade imprevisível e uma segurança totalitária.
A Liberdade foi a grande obsessão moderna! Mas a liberdade “moderna” é diferente da liberdade dos antigos: entre os Gregos, a liberdade era exclusivamente pública, exercida por alguns no interior da Pólis; entre os modernos, ela é essencialmente privada, característica das democracias liberais, o que coloca o eterno problema de como constituir uma Sociedade Civil ou uma Vontade Geral com tantas individualidades e interesses diferentes. Enquanto aceitarmos que a liberdade pública exige certa renúncia aos interesses privados (a noção condorcetiana de “virtude republicana”. Robespierre achava que a República era o “reino dos virtuosos”), as coisas funcionam. O problema é quando não queremos mais renunciar ao interesse privado em nome de um “virtuoso” espaço público dominado pela corrupção. A questão é que, numa sociedade que alia HIPERCONSUMO com TECNOLOGIA DIGITAL, em que imaginamos que as redes sociais ampliam o espaço público em capilaridade e horizontalidade, ocorre o contrário: um TOTALITARISMO LIGHT. Já ficara claro que os novos populismos autoritários não seriam mais aquelas pantominas do hitlerismo ou do mussolinismo: as tecnologias atuais não são apenas redes mundiais de comunicação e troca, mas especialmente a cartografia detalhada de cada subjetividade que a acessa: gosto, preferências sexuais, livros que lê, filmes que assiste, conversas que entabula, lugares que frequenta, compras que realiza, expectativas que alimenta na profissão, no amor… Nenhum estado totalitário chegou tão longe nessa “cartografia subjetiva” voltada para definir perfis de consumo e de comportamento. NÃO MAIS UMA DEMOCRACIA DE CIDADÃOS, MAS UMA DE CONSUMIDORES NARCISISTAS E IMATUROS.
É neste sentido que imagino que a liberdade permitida pelo individualismo liberal transitou do espaço público para o mercado: o primeiro exigia manipulação da CONSCIÊNCIA via ideologia (que tinha seu contrapeso numa “educação crítica e conscientizadora”), o segundo exige a manipulação do DESEJO via marketing. O que é uma Democracia em que a dominação (antes ideológica, mas dispondo da vigilância crítica) funciona na base da instrumentalização do desejo, que é infraconsciente? Estamos dando adeus à Democracia? Estamos, finalmente, nos “libertando da liberdade”, a grande obsessão moderna? Queremos o Tirano de volta?
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Foto da Capa: White House