Os finais de ano sempre dão o que pensar em relação à nossa comum e aflitiva necessidade de fechamentos de ciclos. É uma época em que quase sempre estamos envoltes em uma imperiosa atividade de ajustes e de pertencimento às mesmas tradições que criticamos. É como se a cota de sacrifício ritual do período de festas fosse aderir à proposta de passar um tanto mal entre correrias e orgias etílico-alimentares. Assim, parece que adoecer de “capitalistite aguda” no colo do Papai Noel compõe parte de nossos ritos.
Do lado de cá do divã, a sensação é a de um armagedon eminente, um cataclisma que sabemos que vai ser cancelado à meia-noite do dia 31 de dezembro. Nessa aura de aturdimento, mal nos damos conta de que os ciclos se fecham, apesar de nossos furos. É um frenesi que deixa a meia-noite ainda mais redentora, por trazer um grande alívio. Após as doze badaladas recebemos uma injeção de “deixa prá lá”, de “não esquenta” e de “depois a gente resolve”. E no caso de nosso país carnavalesco esse depois se traduz com a chegada do mês de março. Enfim, vivemos toda essa ritualística à beira dos mais variados ataques de nervos, para melhor esquecer que pior mesmo são os atos sintomáticos que repetimos ao longo de anos, décadas, vidas e sociedades.
Quando posso, em alguns espaços de interlocução psicanalítica, falo um tanto sobre o esquecimento. Assim como os sonhos, essa circunstância psíquica também é uma formação do inconsciente, apesar da menor amplitude nos círculos psicanalíticos que, paradoxalmente, podem chegar a esquecê-la. Por outro lado, fala-se com bastante razão sobre memória. E aqui não me refiro à capacidade cognitiva, mas sobre a formação e a sedimentação de memória histórica e política. Nessa semântica dos sedimentos, sempre me agradou um jogo que o nosso idioma permite: esque-cimento. É o que acontece quando determinados assuntos privados e públicos ganham uma sepultura de indigente: o jogo segue.
Há um ano tivemos um bizarro – mas, infelizmente, não surpreendente – ataque ao estado democrático de direito no qual cidadãos ditos “de bem” se arrogaram o direito de vilipendiar material e simbolicamente a democracia. Os ataques orquestrados em Brasília fizeram uma turba enceguecida grafar em nossa história um episódio tão grave quanto patético. Lamentavelmente, não chegamos nem perto de nos apropriar como nação com a verdade e a responsabilidade do 8 de janeiro. De fato, já o esquecemos, o que nos mantêm miseravelmente no mesmo abismo.
Também nos esquecemos do que se descobriu, há quase um ano, sobre a emergência sanitária vivida pelos nossos irmãos yanomamis. Vimos fotos dos indígenas em condições desumanas, repostamos conteúdo , mas sabemos o que aconteceu com a atividade do garimpo de lá para cá? Optamos por esquecer. Igualmente, nos esquecemos da cultura escravagista na produção vinícola sul-riograndense. Natal, ano novo, ofertas de espumante… Tudo ajuda a consolidar o esque-cimento. De lá pra cá, como vem sendo tratado quem trata a vinha?
A cada ano, a cada dia, antigos esquecimentos precisam ser reavivados como memória ativa. Há fatos que precisam ser admirados novamente. Gosto da ideia de construir um acervo, uma memória pronta para consultar na tentativa – por sorte, nem sempre vã – de não se reencontrar com o esquecimento somente no retorno da repetição.