Um equilíbrio para poder chamar de meu. Onde está tal habilidade? Primeiro, desaparecem sem entendermos se sua necessidade nos faria de fato falta. Lembro de algumas lágrimas por não ser quem eu sou. Um canto de brincadeiras que tantas crianças tinham no pátio da escola. Como era possível para as crianças brincarem sem medo de serem elas mesmas?
Os abrutalhados sinais dos objetos contundentes só se tornam barreiras quando tudo o que falamos não expressa qualquer coisa. Então, surge o homem olhando a criança deitado no leito de pensamentos chamado divã. Ele olha para o teto e encontra um pequeno ponto. Lá o deserto se mostra por todo o lado, silencioso, frio, mortal. E a lágrima escorre lenta pelo rosto. A criança mantinha os olhos quietos em sua contemplação. As horas de silêncio que criam pensamentos insistiam em não passar. Quando se cresce? Seria talvez ali a primeira vez que detinha sobre si o treinamento de captar a luz solar diante ao chão frio do outono. Nada mais ficaria em movimento se os sonhos pudessem ser sonhados… mesmo que as imagens noturnas impusessem um despertar sôfrego.
Contudo, ele nunca se perguntou sobre o que era importante para sonhar. Qual a matéria do sonho? Imagem mistura ao som, um som-imagem que não se escuta. A frequência da qual duvidamos se é uma memória misturada às finas elaborações dos criativos desígnios do córtex pré-frontal. A criança não é adulta, ele pensa. Os adultos são ordeiros, sinceros, falam uma linguagem menos especulativa. Os adultos não choram.
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Essa pequena criação ficcional chega com o amargo sabor das tentativas silenciosas de uma criança diante a um mundo adulto. Uma mágoa dos dois mundos, por um lado. Uma não compreensão de si mesma, por outro. E muitos recursos existiam para dar a essa criança uma boa estrutura. O problema foram as junções de fatores em volta dela e seu próprio destino já traçado pelo caminho do sofrimento. Esse caminho do qual sempre queremos encurtar ou que nem mesmo desejamos pensar. Aliás, pensar sobre o sofrimento parece aumentar ainda mais as dores de dentro do coração. O coração entra em suas trevas, fica com medo.
Na minha época a criança com medo não tinha jeito. Já estava estragada pela sua história de vida. Pelo contrário, a criança com medo não era nem mesmo levada a sério. As pessoas não conseguiam esclarecer para ela aquele medo. E isso hoje se resolve de maneira muito simples: tanto antes como agora as pessoas ainda sentem medo e se não conseguem ajudar a criança é porque olham nela o medo de seus próprios corações. Uma sociedade repleta de adultos com medo se forma em tão pouco tempo.
O medo nesse nível é um despreparo emocional para lidar com a realidade. A criança que deseja se tornar adulto pula etapas. Talvez os adultos também o tenham feito e isso justifica a falta de olhar sobre o que ela esteja sentindo. Já que a vida se torna inóspita, impreterivelmente, concordamos em continuar do mesmo jeito, silenciando o sofrimento até achegar o grito de uma criança…
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O adulto foi estudar o Bhagadagita. Tantas vezes lido e relido, sem entender ao certo as coisas da profunda sabedoria védica. Contudo, o olhar para dentro, aquele que levava ao encontro com sri Krishna tinha uma profunda relevância. Olhar para Krishna como a figura que examinava toda a personalidade humana para além do tempo. Isso era tão inspirador do próprio cristianismo… e tão infantil para uma mente ocidental puramente materialista.
Acontece que mesmo o Ocidente já foi mais espiritual do que nos tempos atuais. Mesmo o Ocidente já sonhou com a pax aeterna por meditações que nada mais eram do que escrutínios pormenorizados da vida diária. Krishna só pode passar seus ensinamentos para alguém que se disponha a aprender, entregand0-se a que o estudo na dose certa seja ao fim e ao cabo um estudo sobre si mesmo, um descortinar-se, um envolvimento pessoal com aquilo que impede que o eu seja ele mesmo.
Arjuna é o guerreiro que diz a Krishna não querer entrar em guerra contra seus primos, faz perguntas envolventes. Ele quer saber sobre si mesmo com a curiosidade de uma criança. As histórias antigas possuem esse enaltecimento da pessoa diante de si verdadeiramente. Ele não precisava parecer alguém, mas tinha um desalinhamento entre seu pensamento e seus sentimentos. Sabia que a guerra era importante, pois seus primos haviam cometido maldades contra todos, mas seu coração tinha tristeza em fazê-lo. Essa dissociação entre pensamento e sentimento é um elemento psicológico profundo para ser resolvido apenas com a externalização da figura de sri Krishna, a divindade encarnada. Os meandros da aprendizagem de Arjuna falam sobre o Dharma o qual, segundo a tradutora Glória Arieira, é “aquilo que faz o objeto ser o que é”. Portanto, Dharma não é apenas a coisa em si mesma, mas também ela é a ação e o seu devido resultado. Dharma é o mérito diante da ação. Por essa razão, temos a ideia de que certas coisas precisam ser realizadas somente pós-nós, tal como um problema que para nós é muito difícil, mas precisa ser solucionado com urgência, caso contrário teremos prejuízo em nossa vida.
A sensação de perda de tempo nos leva a pensar, então, como é a melhor forma de ganhar tempo. E tanto o Bhagadagita quanto as literaturas antigas de outras tradições indicam um olhar de generosidade conosco e com o mundo à nossa volta. Uma generosidade que é também a gratidão pelas coisas serem o que são, algo de difícil reconhecimento quando estamos diante de um problema que nos diz respeito diretamente. Como ser grato de verdade? Ou perdoar de verdade? Ou amar de verdade? A pergunta intransferível que nos faz voltar ao Dharma e seus pródromos existenciais. Entretanto, o livro também revela a ideia de uma liberação (moksha) para a pessoa ser quem ela é. Algo precisa sair do peso de insatisfações e ansiedades, do peso de desejar, entender, querer e ter. Ou, no caso específico do Brasil, de se querer apenas parecer com o outro, tal como uma submissão total que não deve deixar a vergonha por nossos erros ser um aprendizado para a vida.
Ser o que se é e ter responsabilidade com isso nos conduz impreterivelmente a uma vida responsável. Passo com meu caráter a ter de me responsabilizar com as coisas tal como elas surgiram. Será que fui eu a colocá-las ali? Será que deixei sem me dar conta de que elas ali tomassem conta? Será que é ali que devo estar? Ou oprimo meu coração por medo do que as pessoas pensarão?
Perguntas que todo estudante de si deve fazer.
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Daquele pequeno ponto no teto, no deserto das imaginações, um som sai. Som ruído, sem forma sonora aprazível, sem palavra que conduza a um tanto de significados. Sai simplesmente para dizer “eu”. Momento máximo da quebra dos paradigmas. É ali um vislumbre de neblina matutina, a impedir a visão clara, mas permite uma nesga de raio a projetar-se entre suas reentrâncias. Será o sol?
Volta-se para si mesmo uma leve quentura de pele. Era o sol, sim, mas pela janela do consultório. Da neblina surgiu a imagem de uma criança apertando a mão de um adulto para atravessarem juntos um campo de alfazemas. E surge na discrição um sorriso genuíno. Dera-se conta, pela primeira vez, da montagem do filme em uma única cena com perfeição! O ponto ali acima de sua cabeça já não parecia tão pequeno. Pelo contrário: o ponto só era pequeno porque ali se reuniam a criança e o adulto naquele passeio.
A criança-adulto agora se levanta do divã como um só. A capacidade de ser um sem medo do desabafo tórrido ou dos temores por ser tão diferente de tudo que existe na natureza. Ser somente um adulto feliz com a sua criança. Haveria conquista melhor? “Ufa!”, diz ele. “Até que enfim consigo brincar!”
*Estevan de Negreiros Ketzer é psicólogo clínico e doutor em Letras (PUCRS).
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA.
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