Tudo parecia andar bem. Dentro do possível, é claro. Criação de ministérios em defesa do meio ambiente, dos indígenas e dos negros, a partir de encontros e negociações. Acordos no sentido de preservar nossas florestas, fazer justiça e viabilizar uma política decente para os povos marginalizados e escravizados do Brasil. Povos invisíveis, para ser bem objetiva. Medidas para melhorar a vida de famílias de baixa renda, que vivem com quase nada. Sobrevivem, na verdade. Um olhar amplo que reconhece a pluralidade da nossa gente. Somos diversos desde sempre. Só não percebe quem não quer. Ou tem outros interesses, é óbvio.
E os tais “outros interesses”, ao se sentirem ameaçados, chamaram os aliados da Câmara de Deputados e do Senado e começaram a falar mais alto. Em defesa dos que sempre se sentiram donos de tudo – Os colonizadores, sem dúvida. Aqueles que aqui pisaram, ignoraram os povos originários que habitavam as terras brasileiras muito antes da chegada dos europeus e tomaram conta do que foi possível, como se donos fossem. Estabeleceram-se garbosamente e ainda buscaram negros na África para escravizar.
E foi assim que a música do grupo Legião Urbana, que muito cantei em 1987, reverberou na minha memória no final de maio de 2023 – “Que país é esse? / Terceiro mundo se for / Piada no exterior / Mas o Brasil vai ficar rico / Vamos faturar um milhão / Quando vendermos todas as almas / Dos nossos índios num leilão”. Canção do compositor, cantor, instrumentista, produtor e líder do grupo Renato Russo, que morreu de Aids aos 36 anos. A letra é uma crítica à classe política, à falta de impunidade, aos abusos e à corrupção. Ainda dissimulados!
Que país é esse mesmo?
Diante do cenário que se descortina, nada parece andar bem. O que vejo despontar na ilha da fantasia chamada Brasília, onde habitam por temporadas senadores e deputados federais muito bem pagos por nós, é um movimento contra as medidas tomadas pelo presidente e sua equipe. Não me surpreende, mas me entristece porque os políticos de plantão, prontos para derrubar o que favorece a população carente e marginalizada, a maioria vítima de preconceito, são os de sempre. Aqueles que se aliam facilmente para defender os seus interesses e interesses de quem têm muito e quer mais. É da ordem da velha e lamentável política do “toma lá, dá cá”.
No Congresso, já foi aprovada uma Medida Provisória que desfigura o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente, desrespeitando o governo. Sonia Guajajara, Primeira-Ministra Indígena do Brasil, pode perder a autonomia na demarcação das terras indígenas porque a medida deve migrar para o Ministério da Justiça. Justiça?
Já o Ministério do Meio Ambiente, conduzido por Marina Silva, corre o risco de perder o controle sobre órgãos centrais para a efetivação de uma política ambiental eficiente – o Cadastro Ambiental Rural/CAR, que controla a grilagem, a Agência Nacional de Águas e os sistemas que controlam saneamento básico, resíduos sólidos e recursos hídricos. Marina teve um atrito com a Petrobrás ao vetar a licença para exploração de petróleo na Amazônia. E a mídia saiu dizendo que está enfraquecida e o ministério esvaziado. A jornalista Eliane Brum sintetizou o fato em duas frases, afirmando que não foi uma derrota de Marina: “Ao tirar da pasta áreas vitais, acabou. Não acabou para Marina nem para o ministério. Acabou para o governo Lula, que será rearranjado ao modo da extrema direita”.
“Brasil / Mostra a tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim / Brasil / Qual é o teu negócio / O nome do teu sócio / Confia em mim”, já cantava Cazuza em 1988, no álbum “Ideologia”. De autoria dele, Nilo Romero e George Alberto Heilborn Israel, muito cantei essa música, mais uma a revirar minha memória. Rebelde, polêmico e instigante, Cazuza fez parte do grupo Barão Vermelho, que deixou para seguir carreira solo. Morreu aos 32 anos de Aids. Os anos 1980 não foram nada fáceis, mas as pressões por eleições e o movimento “Diretas Já” estimulavam nossa esperança. A ditadura militar acabou em 1985, mas muitos resíduos ficaram contaminando a estrada das nossas vidas.
Que cara tem o Brasil hoje?
Como a ala soberba dos ruralistas não descansa, o movimento para a votação do projeto de lei/PL 490/2007, que cria o Marco Temporal, surtiu efeito. Em 30 de maio, a Câmara de Deputados aprovou e agora vai para votação no Senado. Mais um ataque aos povos indígenas e ao meio ambiente. Mas o que quer mesmo o Marco Temporal? Ludibriar, enganar, “puxar a brasa para o seu assado”. Intenção que está muito clara ao determinar que “as etnias só podem reivindicar demarcação das terras em que já estivessem fisicamente na data da promulgação da Constituição de 1988. Os indígenas se opõem porque, perseguidos e expulsos, muitos não estavam em seus territórios quando a carta foi promulgada. Seria uma catástrofe para os povos indígenas: estima-se que 95% das terras poderiam ser afetadas com a aprovação”. Os ruralistas argumentam que “se o STF derrubar a tese haverá um caos nas demarcações, e eles perderão milhões e milhões de hectares de suas terras para os povos indígenas”.
Mas as terras pertencem aos tais ruralistas? Como? Eles já estavam lá antes do descobrimento do Brasil e ninguém viu, ninguém registrou presenças tão ilustres vindas do primeiro mundo europeu? Os indígenas, então, invadiram as terras? Pobres ruralistas, que injustiça!
Mas, com aliados de sobra no Congresso, já partiram para o lobby costumeiro. Mobilizaram o legislativo para votar o projeto de lei que pode marcar essa definição. Para ajudá-los, a Câmara aprovou “uma MP cheia de jabutis – dispositivos que não têm relação com o tema original”, alterando a lei da Mata Atlântica e flexibilizando obras de infraestrutura sem compensação ambiental.
O líder Yanomami Davi Kopenawa, no livro “A queda do céu”, dá um testemunho autobiográfico que é, ao mesmo tempo, um manifesto contra a destruição da Floresta Amazônica. E faz um alerta porque sabe que os invasores colocam em primeiro lugar interesses específicos de alguns setores do agronegócio e da indústria predatória, sem ouvir as vozes da floresta.
Nunca é demais lembrar que o Brasil é um país diverso e que a riqueza das nossas florestas precisa ser preservada.
Observação: Muitas informações deste texto são do newsletter SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo, Edição 17, Quinta-Feira, 25 de maio, 2023. Nossa voz, por Eliane Brum.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube