Diante da realidade, nem sempre convém romantizar. Só às vezes, já que realidade nenhuma se aguenta sem alguma evasão romântica. Diga-o a arte e o carnaval que, paradoxalmente, tornam essa realidade ainda maior. Afonso Romano de Sant’Anna morreu um mês depois de perder Marina Colasanti, seu amor grande e longevo. Ele, poeta, cronista, professor, crítico literário, agente cultural (diretor durante anos da Biblioteca Nacional), ela, poeta, contista, autora de livros para crianças, artista plástica. Maior que seus epítetos, somente o amor que os unia e testemunhávamos em alguns eventos, surpreendidos por aquela troca de olhares ainda tão viva, depois de tantos anos.
Afonso foi muito importante na minha história com a literatura. Não somente como autor, mas acolhedor. Graças a outro escritor, o poeta, cronista, crítico literário e teatrólogo Paulo Hecker Filho, que me adotou antes ainda, ele que com frequência era ácido, ríspido e não adotava. A mim adotou, lendo, reconhecendo, legitimando, o que foi decisivo para que eu não desistisse de um trabalho tão pouco visível. Não bastando, Paulo agia como um pai que continuava o seu trabalho com o filho, espalhando com orgulho os desenhos em letras do rebento.
Foi assim que o meu primeiro livro de poemas chegou aos olhos de Afonso, que não o reteve. Fez uma crônica exaltando e espalhando cada verso em sua coluna de jornal no centro do país, onde acabava de substituir nada menos do que Drummond. O livro chegou ao Rio e a São Paulo, que lhe abriram algumas portas, tanto quanto essas podem ser abertas para a tão difícil poesia.
Afonso agora beirava os noventa e estava acamado há alguns anos. Sofria de Alzheimer, mas nada que o impedisse de perceber a partida de Marina. Partiu, um mês depois, recentemente. Pode-se dizer que morreu de amor, este mesmo que cantou em poemas, crônicas e ensaios de seus mais de sessenta livros. Pode-se dizer que, nas pontas da vida, bebês e idosos são mais vulneráveis à falta e à ausência do outro. Foi o que mais ou menos o escritor argentino Ernesto Sabato escreveu, quase aos cem anos, no seu livro A Resistência, espécie de testamento vital e literário:
“Quando somos sensíveis, quando nossos poros não estão tapados pelas implacáveis camadas, a proximidade da presença humana nos sacode, nos anima, entendemos que é o outro que sempre nos salva. E se chegamos à idade que temos, é porque outros foram salvando nossa vida, incessantemente. Com a idade que tenho hoje, posso dizer, dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano, uma coisa se atrofiou em nós, ou se quebrou.”
Drummond, a quem Afonso substituiu no jornal, morreu aos 84 anos, 12 dias depois de perder a sua única filha, Maria Julieta. Paulo Hecker exaltou a vida dessa morte, em seu livro Vento, águia, coelho, onde ainda hoje pode ser reencontrado vivo: basta ler.
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