O racismo não é um ente a parte que ataca de vez em quando vidas negras.
O racismo se impõe em todos os aspectos objetivos e subjetivos que tocam nossas vidas, todos os dias. E o amor, no caso das mulheres lidas no Brasil como pardas e pretas é um dos aspectos mais desumanizadores, e que a intelectualidade ama ler e racionalizar sob o conceito da “Solidão da mulher negra.” Mas na hora de criar conexões e reflexões profundas, foge, pois, transformar comportamento precisa muito mais que leituras e livros.
A arte tem o poder de tocar, fazer sentir, transgredir e trazer para a cena provocando outras formas de contato e revelando o que se vive, muitas vezes nos porões, nos dramas internos, questões que achamos que são individuais, mas quando externalizadas se tornam coletivas. E aí podemos elaborar de outra forma identificando o peso da cultura, do patriarcado, do sexismo e do racismo que atravessa muitas vezes uma simples história amorosa de uma mulher preta.
Iza quebra o silêncio, revela seu sofrimento em um casamento interracial, Iza canta sua história de amor abusivo desenrolando sua dor em cena pública, de forma feiticeira e mágica, com letras que pulsam e ouvidas em sequência contam uma história que a estava sufocando. E eu fico pensando aqui comigo: Até tu Iza? Aprendi com meus amigos psicanalistas que a circulação da palavra é um ato de coragem e de cura. E Iza faz isto brilhantemente transformando sua história amorosa, em 13 músicas com 40 min33s, disponível no Spotfy.
“Nunca mais” inicia dizendo: “Tenho mil motivos para te esquecer. Para na porta… deixa eu olhar você. Observo a distância tudo, e te vejo como nunca vi.” E ela propõe que pode vir sem medo. E canta: “Ou fica pra vida toda ou pra nunca mais.” Este refrão bate forte e a entidade Afrohit, mulher preta que ama, declara que chega de jogos. De impossibilidades. Que ela não quer ser mais manipulada com condições que são negociadas. Ou que só quer ser lembrada para um sexo casual. Porque sim… a mulher preta ainda é um objeto sexual e subserviente a relação com o homem brasileiro. “Seu corpo me chama…” Mas… ou é pra vida toda ou pra nunca mais. Quem nunca entre nós já entrou neste jogo? E saiu machucada cheia de dores pela desumanização?
Mas é na segunda canção que IZA explode um manifesto: “Fé nas malucas” , e este bate em cheio na nossa subjetividade de mulher preta que sai da invisibilidade, mas tem que lidar com o abuso tanto, do amor, quanto das relações de um olhar de uma sociedade com visão colonizadora e racista sobre nós:
Sempre focada, não liga pra nada
Segue bem quista entre a rapaziada
E se o assunto esquentar, ela compra a parada, rara
Voa, 484, perco dinheiro mas não perco tempo
Eu tô trabalhando dobrado
A multa é cara e o processo é lento
Voa, 484, perco dinheiro mas não perco tempo (é)
Eu tô trabalhando dobrado
E tô vivendo meu melhor momentoFé nas maluca (ai, ai, ai, ai)
Fé nas maluca (hahahaha, ai)Ó
021 da braba
Melanina cara, é o gueto na Forbes
Se eu quero, não mudo de ideia (uh, uh)
Sou bagulho doido, trem bala é a bossy
Se quiser aposte, te compro uma Porsch?
Soldada da Norte, Talismã da sorteOlha, deixa ?la passar
Radin’ na cintura, mira certa pra atacar (pra)
Olha, deixa ela passar
Tô subindo a rua, ninguém vai me segurar
Fé nas maluca (muita fé nas maluca)
Fé nas maluca
Eu quero tudo e mais um pouco
Eu quero um futuro ambicioso
Nem todo artista é louco, meu drama ainda é pouco
Vem com processo que eu vou com trabalho
Filha da puta quer dinheiro fácil
Meu advogado tá em cima da pedra
Xangô te olhando de cima pra baixo
Quanto mais eu ganho, mais tu apanha
Quer andar comigo, sente o peso da fama
Meu dinheiro te chama, agressiva na cama
Eu não faço carinho, eu dou Dolce Gabbana
Viagem pra Roma, ganhando em dólar
Engolindo sua, fazendo espanhola
Tu dizendo que me ama
E eu enchendo seu cu de grana
(Hahaha)
Olha, deixa ela passar
Rádio na cintura, mira certa pra atacar (ó)
Olha, deixa ela passar
Tô subindo a rua, ninguém vai me segurar
Fé nas maluca (entra na frente desse trem, entra; Fé, fé, fé)
Fé nas maluca (caralho)
(Se eu não chegar em casa e estourar um gelo, eu sou maluca)
Fé nas maluca (muita fé nas maluca; Fé, fé, fé)
(Tô te falando)
Fé nas maluca (eu quebro sua Porsche)
(Hahahaha)
IZA (hahaha)
Dá dois pra ela
Carol de Niterói
Dá três pra ela
As letras revelam uma mulher preta que não se posiciona, e vai explodindo por dentro. Porque somos educadas a não externar a violência das relações. A mantermos as aparências. Em nome do quê? Do julgamento social e de quem não acolhe nossa subjetividade.
Iza está externando um arquétipo dolorido de AFRODHIT. As canções fazem milhões de mulheres pretas se identificarem e pensarem: não sou só eu… Iza está sendo inovadora, autoral, potente, feiticeira… No dia do lançamento do álbum a imagem da Afrodhit virou uma onda nas redes sociais de mulheres negras jovens em todo o Brasil.
Iza vem como filha do vento, entidade mítica iorubá, jogando a publico que somos mais que corpo e força para sustentar homens, famílias e perpetuarmos um papel moderno de mulher negra subserviente. Somos afrodhits prontas para ecoar. Nossa voz e histórias importam. E está na hora de trazermos a cena a nossa subjetividade. Porque se amor fosse igual para todos, a nossa cor não seria impeditiva para nos excluírem até de sermos amadas, e não objetificadas. Escute o álbum da Iza, ouvir o que a arte do seu tempo reflete, te ajuda a nos entender para além dos livros.