Imaginar um futuro em que a ancestralidade, a cultura e a história africana estejam presentes, contribuindo para uma nova forma de olhar para o mundo e para o papel das pessoas negras na sociedade, ainda parece bem distante, não é?
Quando lutar para estar vivo a cada dia é uma constante, pensar no futuro está muito próximo da ficção. Dentro do quadro de miséria a que a maior parte da população negra foi e ainda é submetida no Brasil, estou naquela parcela de privilegiados que cresceram com comida, escola e carinho. Sem recursos para nos propiciar férias com viagens, fugas para a praia e essas coisas banais para a classe média, minha mãe abastecia as férias de sete crianças negras com leitura, cinema, exposições, um ou outro show e teatro.
Éramos seres de exceção, é verdade. E foi assim que eu, particularmente, me apaixonei pela ficção, em especial a científica. Na adolescência, George Orwell, Ray Bradbury, Aldous Huxley, Philip K. Dick, entre outros, eram presenças tranquilas na minha cabeceira. Nunca questionei a ausência de personagens negros ou referências à cultura africana nessas tramas. Havia, sim, uma luta de classes, luta antidiscriminatória e luta pela igualdade de status e oportunidades. Eu não queria ser uma “gama”, não queria ser um bicho inferior nem um androide com pouca expectativa de vida… A metáfora implícita nessas situações imaginárias dizia muito sobre a realidade da população negra: inferiorizada intelectual, econômica e socialmente, implicada em seu desenvolvimento e em sua sobrevivência.
Essa consciência e paralelo que faço hoje é o que me traz sempre à mente a frase “afrofuturismo é estar vivo amanhã”, atribuída a Ytasha Womack, autora do livro Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture. Ytasha resume aí a ideia central do afrofuturismo, que é imaginar um futuro melhor e mais justo para as pessoas negras, em que elas possam se ver representadas e participar plenamente da sociedade.
Já falei aqui na Sler sobre esse movimento, lembram? Longe de ser uma especialista, tenho sim muita curiosidade e torço pelo desenvolvimento do Afrofuturismo.
O conceito surgiu no meio artístico-cultural, no início dos anos 1960 pelas mãos do músico norte-americano Sun Ra, considerado o pai da estética de ficção científica ligada à negritude. Sun Ra era instrumentista, compositor de jazz e poeta e também um estudioso da vida extraterrestre. Para ele, no espaço sideral, em outras galáxias, o racismo não teria lugar e pessoas negras poderiam viver e criar livremente. Nos anos 1990, o escritor e crítico cultural Mark Dery, também norte-americano, passou a utilizar o termo Afrofuturismo. Seguindo a trilha da resistência racial, o movimento passou a projetar pessoas negras no futuro e a pensar estratégias no presente para assegurar a sobrevivência do grupo.
Embora a literatura seja a área mais profícua, moda, cinema e artes plásticas são outros campos em que o afrofuturismo se apresenta e cresce de forma bastante rápida. Semanas atrás, mostrei aqui o trabalho do artista nigeriano Malik, que, usando os recursos da inteligência artificial, criou uma impressionante coleção com roupas afrocentradas e modelos negros idosos. (leia aqui)
No Brasil, o afrofuturismo ainda é um movimento incipiente, mas já chama a atenção da mídia com cada vez mais força. Ano passado, a editora HarperCollins fechou contrato com a RT Features, produtora internacional do brasileiro Rodrigo Teixeira, que tem na bagagem sucessos como o filme Me chame pelo seu nome, para desenvolver uma série de streaming baseada no livro O último ancestral. Obra de ficção científica lançada em 2021, o livro de Ale Santos usa elementos de afrofuturismo em uma fantasia urbana que traz referências de fé, cultura e história africana no Brasil. O romance alimenta um filão cinematográfico oportuno depois do sucesso de filmes como Pantera Negra e Wakanda Forever, da Marvel.
A trama criada por Ale Santos se passa em um mundo de fantasia no qual tecnologia se funde com magia, criando um ambiente que parece saído de um conto de fadas. A grande diferença é que este universo é inspirado nas tradições africanas e afro-brasileiras, como o candomblé e a capoeira, representados de forma futurista e inovadora.
Após ter uma visão sobre um espírito poderoso, Eliah, um jovem negro talentoso das favelas de Obambo, decide enfrentar o domínio dos híbridos de humanos e máquinas chamados Cybergen para libertar o seu povo e resgatar sua cultura oprimida.
Enquanto a série não sai, o autor comemora a fase final da adaptação de O último ancestral para RPG de mesa, jogo digital em que os participantes interpretam os personagens da trama.
Enfim, Ale Santos consegue levar o afrofuturismo para diferentes públicos com uma única história (por enquanto).
A gente já tá acreditando que uma admirável e nova concepção de futuro está chegando… Que assim seja!