Esta semana, vi um post incrível do arquiteto e militante Antonio Isuperio, criatura fantástica que sigo no Instagram (@isuperio) como se fosse um amigo próximo – e ele nem sabe que eu existo… normal, né?
A postagem se refere a uma criação gerada por Inteligência Artificial em que modelos negros em idade avançada desfilam em uma passarela de moda. Roupas descoladas, desestruturadas, com um toque de ancestralidade e uma pincelada futurista. Tudo virtual. E lindo.
As fotos causaram espanto, preconceito, palmas e meio que viralizaram em determinados setores nos Estados Unidos, onde Isuperio está vivendo numa espécie de exílio depois de ameaças contra sua vida no Brasil – sim, isso é real, já que o mocinho é negro e homossexual, mas isso é outro assunto. Em seu texto no Instagram, Isuperio puxou o gancho para o afrofuturismo que, para além da estética e da filosofia, que combina elementos da ficção-científica com a cultura de matriz africana, se detém em uma questão básica e crucial: afrofuturismo é você, pessoa negra, estar viva amanhã.
Ao ver o post e as fotos, logo lembrei da minha vó Rosina, uma das grandes mulheres da minha vida. De origem muito simples, ela conviveu na alta roda e tomou gosto pelo requinte. A vó nasceu em Bojuru, São José do Norte, no início do século 20. Teve sua “formação” totalmente em Pelotas. Em casa de fazendeiros, como doméstica desde muito cedo, ela aprendeu a cozinhar, arrumar uma casa com requinte e bom gosto, bordar, costurar, ler e escrever. Isso abriu portas na elite Porto-alegrense para a qual ela trabalhava com status de governanta e não mais de doméstica, mesmo que a diferença salarial fosse inexistente na prática. Sempre que sentia a sua liberdade afetada, dona Rosina adorava dizer: sou maior de idade, alfabetizada, vacinada, eleitora e dona do meu nariz. Minha avó tinha uma espirituosidade e humor muito particulares. Se tivesse mais recursos financeiros que não a obrigassem a trabalhar pela sobrevivência, com certeza teria nos deixados um legado artístico e literário de muita consistência. Morreu cedo e ainda hoje nos alimentamos das lembranças, receitas e máximas que ela largava. À sua maneira, minha avó representava para mim um símbolo afrofuturista.
O conceito em si abarca muito mais do que um gênero artístico. Afrofuturismo é um movimento estético e social que propõe uma nova narrativa para questionar o passado, a história do povo negro e como fatos marcantes chegam até nós em versão eurocentrada. Temos por exemplos a escravidão e a abolição. A versão da branquitude é praticamente romantizada. Na narrativa afrofuturista, a abordagem é outra e nos convoca a construir um novo futuro no qual os negros estão presentes em sua máxima potência.
Na moda, elementos usados nas roupas e cabelos estão ligados às raízes africanas, como uma forma de conexão com seus ancestrais e com quem eles são.
Viver sem risco de morte precoce, seja por violência, truculência racista ou falta de uma estrutura de saúde inclusiva, é a base do afrofuturismo.
Vamos imaginar um mundo no qual nunca houve escravidão e a população negra pode usufuir de igualdade socioeconômica, paz e liberdade religiosa.
Neste mundo, temos uma tecnologia bem desenvolvida, as vestimentas mesclam símbolos futuristas e ancestrais. Esse mundo é imaginário, mas existe na arte. Chama-se Wakanda, e existe nos filmes Pantera Negra e Wakanda Forever, derivados dos quadrinhos de Stan Lee, da Marvel.
Minha avó morreu com 72 anos. Teve uma única filha, minha mãe, que morreu com 74 anos. Já eram consideradas idosas e, no entanto, eram pessoas muito ativas e tinham muito ainda para nos ensinar. Estavam naquele grupo de “mulheres adiante de seu tempo” como tantas avós e mães que nos deixam de forma precoce mesmo que isso pareça normal para descendentes de escravizados.
Dona Rosina não viveu para conhecer Beyoncé, não viu Pantera Negra (ela ia adorar o Chadwick), mas plantou em sua única filha, nossa mãe, e em seus sete netos, o desejo de mudança, o instinto de sobrevivência e a necessidade de escrever uma nova história.
Quando a gente vê postagens como a do Isuperio e o movimento afrofuturista ganhando espaço, galgando passos para sua consolidação, bate aquela esperança, bate aquela certeza de que ainda que seja um processo lento, as coisas estão mudando. E, sim, para melhor.