Havia um programa de TV, numa das emissoras com programação local, em Recife, lá pelos idos dos anos 60 do século passado, programa ao vivo, em estúdio, que se chamava “Agarre o que puder”. Em princípio, era um programa dedicado às crianças, e eu era um dos telespectadores infantis absolutamente fiéis e vidrados nele, mas se comentava que a audiência não se limitava às crianças. A proposta do programa era, em princípio, muito simples e atraente – e eu perdi a conta das cartas que escrevi à produção do programa, na esperança, nunca realizada, de ter minha cartinha sorteada e poder participar ao vivo de um dos programas!
Participavam três felizes sorteados, crianças em faixa etária pré-estabelecida, os quais, ao soar uma cigarra e se iniciar uma contagem regressiva de três minutos, poderiam percorrer o espaço de uma sala ampla cheia de brinquedos os mais variados: bolas de todos os tipos, jogos idem, caixas dos ambicionados autoramas, bonecas da Estrela, conjuntos completos de frescobol, e cada criança poderia, como indicava o título do programa (com seu desafio embutido), agarrar o que pudesse, no espaço de tempo estabelecido. Caso os preciosos bens agarrados caíssem no chão, tendo em vista o excesso de brinquedos coletados, a criança poderia apanhar de volta, mas não após soar a cigarra indicando o final do período de coleta. E, uma vez esgotado o tempo, a criança deveria caminhar até uma área indicada, com os brinquedos acumulados, onde só então poderia tomar posse definitiva de sua riqueza. Mas muitas vezes, ao esboçar um primeiro passo rumo a tal área, a pobre criança deixava cair tudo, e aí tudo se perdia irremediavelmente, para imenso desespero dela, como também nosso, telespectadores e torcedores mirins.
A mensagem embutida no desafio, conforme o animador comentava, era ter a sabedoria de moderar a sofreguidão da coleta, e agarrar o que se queria, mas o que se podia… Não se podia pegar tudo, sob pena de, ao final, não se poder guardar nada… Eu, de minha parte, tinha um plano de coleta baseado numa hierarquia dos bens mais desejados – a caixa do autorama em primeiríssimo lugar! Efetivamente, poucas crianças conseguiam pegar e conservar seus bens – aqui e ali via-se um pequeno herói, uma criança-montanha de brinquedos ambulante, movendo-se penosamente rumo à área de conquista final, ocasião em que explodiam salvas de palmas, música triunfal, felicitações… Mas, via de regra, o choro era de frustração, duro aprendizado do “quem tudo quer, tudo perde”… Acho que hoje, tal programa não passaria no crivo da proteção à saúde mental das crianças, seria considerado excessivamente perverso…
Às vezes penso que o paradigma do “agarre o que puder” me acompanhou vida afora… aqui e ali me pego pensando que minha voracidade em relação a projetos pessoais, objetivos de trabalho e de vida, explicaria justamente o tanto de sensação de frustração por perceber tais projetos se atropelando entre si, competindo por tempo e atenção. A ênfase dos “influencers” contemporâneos no famigerado “foco” talvez seja herdeira da fala do animador do programa, com seu sorriso mefistofélico enfatizando que é preciso agarrar, mas o que puder… É preciso ter foco e capacidade de priorização – competência crucial que se iniciava no jogo televisivo… Talvez por isso, justamente, havia não poucos adultos na audiência do programa…
Tantas são as demandas, os apelos, as fontes de satisfação almejadas vida afora… Muitas vezes, elege-se quantidade excessiva delas, e não poucas vezes, como no caso dramático da perda de todos os brinquedos, espalhados pelo chão, as demandas se digladiam entre si, como caranguejos num caçuá (como se diz em meu Recife natal), e ao fim e ao cabo se percebe que, tantas foram as tarefas e metas, que nada se conseguiu completar. Ou se completou menos do que se poderia ou se deveria ter completado. Essa vivência, diga-se de passagem, está no âmago de certo adoecimento no mundo do trabalho: muito se quis, muito se almejou, muito se programou, mas a sensação que persiste é de um fracasso renitente em ter escolhido as boas metas, ou ter diferenciado o desejável do possível… Tal linha demarcatória não está escrita em lugar nenhum, em blog nenhum, em nenhuma fala de nenhum influenciador moderninho. O que se oferece são máximas de pretensa sabedoria meio que óbvias, do tipo “você deve agarrar o que puder”, não mais, não menos…
O trabalho é algo multifacetado: ele é a fonte daquela sensação boa do “mandei bem”, fiz e faço bem meu trabalho, sou respeitado no que faço. Ao mesmo tempo, ele, o trabalho, devora frequentemente as outras facetas da vida, exaure, vicia, atrai para a situação perigosa em que se percebe que, de segunda a sexta-feira, o que se faz é manter pratos em equilíbrio no picadeiro do circo da vida (como no número de Xin-Ling, o Equilibrista Chinês de Pratos), numa sistemática enlouquecedora em que há cada vez mais pratos a equilibrar, e mais pratos a manter girando na ponta das varetas, mais pratos ameaçando cair se não forem girados pelas varetas – angústia na plateia, torcida para que Xing Ling conclua seu número sem deixar cair nenhum prato…
Do “Agarre o que puder” a “Xin Ling, o Equilibrista de Pratos”, passamos parte considerável da vida movidos pela angústia inerente a essas metáforas, lutando contra o tal burnout, contra a sensação de trabalho esvaziado, contra o medo de que tudo desmorone. Que, ao fim e ao cabo, tudo o que se vai levar pra casa será a vivência amarga da incompetência existencial na dosagem dos brinquedos a conquistar, dos pratos a equilibrar, da vida que de fato se viveu.
Trabalho
Atividade que nos constrói e desconstrói, nos traz desenvolvimento, lugar social e adoecimento. Noves fora o pagamento dos boletos.
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Foto da Capa: Showz Agency / Divulgação