Um dos significados da palavra dilema é “a escolha entre duas alternativas igualmente ruins”. Um exemplo é o “dilema de Cordélia” da peça “Rei Lear” de Shakespeare. Na história, Cordélia, filha do rei Lear, tem que escolher entre dizer a verdade e ser desprezada pelo pai, ou mentir como fazem suas duas irmãs bajuladoras (Goneril e Regan). Ela escolhe dizer a verdade, o pai de fato a despreza e reparte o reino entre suas irmãs, que se revelam cruéis e dominadoras. No final da peça, todos os personagens principais, incluindo Lear, Cordélia, Goneril e Regan morrem (afinal, é uma tragédia de Shakespeare) devido às suas escolhas erradas.
No que se refere à agricultura e à criação de animais, parece que também estamos diante de um verdadeiro dilema. Sabemos que nosso sistema atual de produção de alimentos é o principal responsável pela destruição de ecossistemas e pela maior extinção de espécies em dezenas de milhões de anos, além de ser um importante emissor de gases de efeito estufa e fonte de diversos tipos de poluição. É um sistema insustentável, pois, apenas em termos de exploração de recursos naturais (incluindo as atividades de agricultura, pesca e extração mineral), estamos utilizando 1,75 planetas por ano (sendo que 1,0 seria o que o planeta conseguiria regenerar).
Por outro lado, uma série de fenômenos provocados em parte ou totalmente pelo sistema de produção de alimentos já está reduzindo a produtividade agrícola. Tais fenômenos incluem as mudanças climáticas, que tornam o clima mais imprevisível, causam chuvas e inundações catastróficas e secas prolongadas. Além disso, há uma acentuada perda de solos férteis e uma crise hídrica sem precedentes (causadas em grande parte pelo próprio agronegócio). Tal situação parece sugerir que precisaremos utilizar todas as terras férteis disponíveis, incluindo as ainda ocupadas por ecossistemas naturais, para produzir alimentos para um mundo faminto.
Mas isso representaria uma grande catástrofe ambiental, que prejudicaria ainda mais o agronegócio. E deve ser evitado a todo custo. E realmente pode ser evitado. É possível alimentarmos o mundo de forma sustentável, se tomarmos as medidas que apresentei no artigo anterior que incluem:
(1) Interrupção total do desmatamento irregular e demais processos de destruição de ecossistemas;
(2) Restauração de ecossistemas degradados para recuperação das reservas legais e das áreas protegidas que foram devastadas;
(3) Redução extrema do uso de fertilizantes artificiais e agrotóxicos;
(4) Investimento substancial em pesquisa de plantas e animais mais resistentes às variações climáticas e às pragas;
(5) Utilização de espécies locais tanto na produção quanto no consumo de alimentos;
(6) Substituição das monoculturas por culturas rotativas que permitam a melhor preservação dos solos;
(7) Redução drástica do consumo de carnes e laticínios;
Objeções às propostas acima têm sido apresentadas na mídia e até mesmo na comunidade de especialistas. As mais consistentes são:
(1) A impossibilidade de se produzir localmente, em muitas regiões, a maior parte dos alimentos que são ali consumidos;
(2) A dependência das monoculturas de grãos para alimentar o mundo (como ficou evidente na guerra da Ucrânia); e
(3) A dificuldade de mudar os hábitos alimentares das populações, muitos deles representando traços culturais arraigados (como o churrasco do Brasil e o queijo dos franceses).
São colocações válidas. Mas pretendo demonstrar a seguir que podemos superar essas dificuldades e chegar a um sistema de produção e consumo de alimentos muito mais sustentável mesmo com essas dificuldades (iniciais). No entanto, vale uma observação: não devemos esperar a adoção de medidas radicais, por mais que sejam necessárias. Tal abordagem poderia produzir mais resistência às mudanças, que é justamente o que não se quer. Mas temos que começar e seguir em frente de forma rápida, porque a situação já é muito grave, como indica o aumento global do preço dos alimentos.
Vamos ver primeiro as principais técnicas e opções para a adoção da agricultura sustentável e depois comentar as dificuldades e soluções para sua implementação.
Agricultura regenerativa
A agricultura regenerativa é o termo mais geral para técnicas focadas na conservação e reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas. Ela abrange a regeneração do solo fértil, o aumento da biodiversidade, o cuidado com os recursos hídricos, o aprimoramento dos serviços ambientais, o suporte ao sequestro de carbono, o aumento da resiliência às mudanças climáticas e o fortalecimento da saúde e vitalidade do solo agrícola.
A agricultura regenerativa não é uma prática específica. Em vez disso, os proponentes da agricultura regenerativa utilizam uma variedade de outras técnicas agrícolas sustentáveis em combinação. Veremos a seguir as mais relevantes em termos de escala de aplicabilidade e retorno econômico.
Agricultura de precisão
A agricultura de precisão envolve a utilização de modernas tecnologias na agricultura e na criação de animais. O advento do GPS de alta precisão, de sensores de diferentes tipos, máquinas cada vez mais sofisticadas (incluindo drones) possibilita um acompanhamento em tempo real da situação no campo.
Dessa forma, o crescimento e a saúde de plantas e animais, as condições do solo (umidade e nutrientes), os eventos climáticos, a presença de pragas e vários outros fenômenos que afetam a produtividade das lavouras e criações podem ser monitorados continuamente e, quando necessários, prevenidos ou corrigidos de forma imediata sempre que algum desvio for detectado.
Assim, não apenas todos os processos agrários ficam mais eficientes, mas também o uso (e o gasto) de insumos – água, fertilizantes, agrotóxicos – pode ser muito reduzido. Essa monitoração pode ser estendida por todo o sistema de produção e consumo de alimentos, adequando melhor a produção com a demanda e reduzindo o desperdício.
Agricultura orgânica
A agricultura orgânica é um sistema de produção agrícola que busca produzir alimentos saudáveis e nutritivos, que não contenham resíduos de agrotóxicos e outros produtos químicos prejudiciais à saúde humana e animal. Dessa forma, o uso de fertilizantes é reduzido ao mínimo necessário para correção dos solos e o uso de agrotóxicos é banido. Além disso, ela se preocupa em garantir a saúde do solo, das plantas e do meio ambiente como um todo.
Para obter esses resultados, a agricultura orgânica faz uso de diversas técnicas de manejo sustentável, incluindo:
Rotação de culturas: A rotação de culturas consiste em alternar diferentes culturas no mesmo terreno ao longo do tempo, o que ajuda a manter os solos saudáveis, controlar pragas e doenças e preservar a biodiversidade.
Adubação verde: A adubação verde usa o cultivo de leguminosas (inclusive aquelas capazes de fixar nitrogênio) e outras plantas de cobertura do solo para melhorar a sua fertilidade e manter sua camada orgânica superficial.
Compostagem: A compostagem consiste em transformar restos de alimentos e outros materiais orgânicos em adubo, que pode ser utilizado para melhorar a fertilidade do solo e reduzir o desperdício de alimentos.
Controle biológico de pragas e doenças: O controle biológico de pragas e doenças utiliza organismos vivos, como predadores naturais e parasitas, para controlar as pragas e doenças das plantas.
Uso de sementes orgânicas: A agricultura orgânica utiliza sementes que não foram tratadas com nenhum tipo de produto químico.
Os alimentos orgânicos são mais saudáveis e nutritivos, pois não contêm resíduos de agrotóxicos e outros produtos químicos prejudiciais à saúde.
Além disso, a agricultura orgânica possibilita a maior preservação dos ecossistemas locais e sua biodiversidade. No longo prazo, é a melhor opção econômica, pois preserva solos, recursos hídricos e todo o sistema vivo (polinizadores, organismos de controle de pragas etc.) que mantém a produtividade agrícola.
Sistemas agroflorestais (SAFs)
Os sistemas agroflorestais (SAFs) são uma forma de cultivo que combina árvores e arbustos com culturas agrícolas, forragens e animais. Eles são uma excelente alternativa ao modelo agrícola tradicional, pois podem ser implementados em larga escala, substituindo as monoculturas.
Os SAFs podem trazer inúmeros benefícios ambientais, como a melhoria da qualidade do solo e da água; a interrupção da degradação do solo; a redução do efeito das inundações (pela atuação das matas ciliares e zonas de acumulação de água); a criação de zonas de proteção para o calor e a manutenção da biodiversidade².
De uma certa forma, os sistemas agroflorestais são o tipo de manejo agrícola que mais se aproxima da maneira com que os agricultores primitivos trabalhavam. Agora, adotando técnicas modernas, os SAFs podem garantir um excelente retorno econômico, já que são adaptáveis às características de diferentes regiões e permitem a flexibilização da produção em função das flutuações do mercado e variações climáticas. Além disso, fornecem produtos como madeiras nobres, animais criados naturalmente e diversos outros que têm um elevado valor de mercado.
Métodos inovadores
O sistema de produção de alimentos, num futuro mais distante (horizonte 2050-2070) poderá ser bem diferente do atual. Embora alguns especialistas se refiram ao incremento do uso de alimentos (hoje) exóticos, como algas, cogumelos e até insetos, as tendências mais claras são os produtos agrícolas, iniciando-se com os hortifrutigranjeiros, serem produzidos em “fazendas verticais”.
Para isso, serão utilizadas técnicas semelhantes à atual cultura hidropônica. Com reutilização de boa parte dos insumos, como água e nutrientes. Essa alternativa, por conta de sua alta produtividade, verticalização e por dispensar o uso de solos, vai requerer áreas muito menores do que as necessárias atualmente, liberando as terras para recuperação dos ecossistemas, lazer e, eventualmente, urbanização sustentável.
A mudança na maneira de se cultivar grãos talvez seja mais demorada. Mas também vai acontecer. Inicialmente pela adoção das técnicas descritas neste artigo. Depois, pelo uso de fazendas verticais também para sua produção. No caso de trigo, que é o grão mais essencial para a alimentação humana, já estão sendo desenvolvidas tecnologias para seu cultivo em fazendas verticais². Milho e soja virão em seguida, mas em menor quantidade, pois são utilizados preponderantemente como ração animal, cuja demanda, como veremos a seguir, deverá ser muito reduzida.
A criação de animais não será mais necessária porque as carnes serão cultivadas a partir de células, reduzindo o uso de terras, água e de insumos para ração animal. Além de poupar os animais do sofrimento, o fim da criação animal é outro fator que contribuirá para ampliar a produção de alimentos sem prejudicar o meio ambiente.
O “cultivo” de carnes, hoje realizado em laboratórios, está sendo rapidamente ampliado para escala industrial e pode chegar às prateleiras dos supermercados bem antes do que se imagina. Inicialmente, essas carnes deverão vir na forma de empanados, “nuggets” e carne moída. Mas não duvide que logo apareça uma picanha de carne cultivada!
É relevante ressaltar ainda que muitas “carnes” produzidas a partir de matéria-prima vegetal estão ficando com textura e sabor muito semelhante à carne natural. Esse é o caso de hambúrgueres, almôndegas e outros produtos feitos com “carne” moída. Como a carne moída é o tipo de carne mais consumido no mundo, esse avanço, que já é economicamente competitivo em muitos países, representa um progresso substancial na busca da redução do consumo de carne animal.
Se nós já temos as soluções, por que não as aplicamos?
Essa pergunta, para ser devidamente respondida, iria requerer um tratado de psicologia e neurociência. Mas pode ser resumida em uma observação simples: a não ser que haja ameaças ou vantagens muito claras, nós resistimos à mudança. A força do “sempre fizemos assim”, que se refere não apenas ao modo como pessoas e empresas agem. Inclui também o fato de haver todo um sistema desenvolvido para se cultivar e fabricar as coisas da maneira que fazemos, que faz com que haja grande resistência a se modificar os sistemas produtivos.
No que se refere às objeções apresentadas anteriormente, a agricultura orgânica é uma opção que, inicialmente, deve ser adotada pelos pequenos proprietários, principalmente de produtos hortifrutigranjeiros (que também podem incluir animais mantidos e alimentados sem produtos artificiais). Os SAFs são uma excelente opção para iniciar a substituição das monoculturas. No médio e longo prazo, darão mais retornos econômicos, pela redução no uso de fertilizantes e agrotóxicos.
Finalmente, fazem parte da agricultura regenerativa as iniciativas para se reduzir a emissão de gases de efeito estufa, via eliminação do desmatamento, menor uso de fertilizantes artificiais, uso de formas limpas de energia e redução da distância de transporte entre o campo e a mesa. Essa última iniciativa não poderá ser tomada em todos os lugares e para todos os tipos de alimentos. Mas a opção por produtos locais e da estação pode sim reduzir essa distância e, portanto, a emissão, pelo transporte, de gases de efeito estufa.
É perfeitamente possível tornar o sistema de produção e consumo de alimentos mais sustentável sem prejudicar o prazer degustativo, a saúde nem o bolso de ninguém. Como vimos, as alternativas aqui apresentadas não exigem que se elimine o consumo de carnes e laticínios, embora, até por questões de saúde, seu consumo deva ser mesmo reduzido. No entanto, atualmente há muitos incentivos para se manter o sistema como está.
Ou seja, é necessário que a sociedade, consciente dos problemas e suas soluções, pressione governantes e legisladores a mudarem a estrutura de incentivos. Além disso, é importante que os consumidores optem, sem que seja uma grande mudança nos seus hábitos alimentares, por produtos produzidos de forma sustentável. Essas iniciativas, que podem ser tomadas imediatamente, vão propiciar uma grande expansão da agricultura sustentável³.
A mudança está, portanto, em nossas mãos (ou, no caso, bocas!).
Notas:
1. Este é o sexto artigo da série em que eu discuto soluções e estratégias para o enfrentamento da crise ambiental global. O livro “Planeta Hostil”, assim como uma série de colunas publicadas na Sler, apresentam uma visão detalhada da destruição causada pelo agronegócio, que pode ser evitada pelas alternativas apresentadas neste artigo.
2. Para exemplos, veja textos e vídeos da empresa InFarm.
3. A recente adoção de limites para o uso de alimentos processados e ultraprocessados nas escolas é um exemplo deste tipo de iniciativa. O mesmo deveria ser feito com a estrutura de impostos e incentivos associada a esses e outros alimentos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Observação final: O livro “Planeta Hostil” pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em lojas online. Para opções de compra, vídeos e textos adicionais digite “planeta hostil marco moraes” no seu navegador. Confira também meu perfil no Instagram: @marcomoraesciencia.
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