Recentemente, um grupo de cientistas e líderes mundiais incluindo vários ganhadores do prêmio Nobel, lançaram um manifesto defendendo a necessidade de aumentar a produção de alimentos por conta do risco de ocorrer uma catástrofe de fome no mundo. Segundo o documento, é preciso investir em pesquisa e desenvolvimento tecnológico para garantir que as mudanças climáticas, conflitos e perda de solos não tornem inviável alimentar os 9,7 bilhões de pessoas que existirão no planeta em 2050 (1).
Ao mesmo tempo, conforme descrevo em detalhes no livro Planeta Hostil, o nosso atual sistema de produção de alimentos é o responsável pela maior crise da biodiversidade (entenda-se extinção de espécies e ecossistemas) que o planeta experimentou em 60 milhões de anos, além de causar graves problemas de poluição e perda de solos férteis que já estão afetando a produtividade agrícola em todo o mundo.
Uma das razões da dificuldade em abandonarmos o atual sistema é justamente seu sucesso. A chamada revolução agrícola, ou revolução verde, que durante o século XX permitiu que a maior parte dos habitantes do planeta (cuja população saltou de 1,6 bilhões em 1900 para 6,2 bilhões no ano 2000) tivesse acesso à alimentação de qualidade, foi baseada no tripé fertilizantes sintéticos, agrotóxicos e monoculturas (principalmente de trigo, milho e soja). Pois esses componentes são justamente os que agora representam as maiores ameaças ao meio ambiente e à própria produtividade agrícola (2).
O paradigma que ainda é prevalente no agronegócio é o de que a terra é um recurso barato e infinito que deve ser explorado para o máximo ganho. Esse modelo, claramente insustentável, é ainda defendido de forma às vezes enfática no Brasil e em muitos outros países. Por isso, uma parte do nosso agronegócio (3) continua desmatando, queimando e destruindo ecossistemas e o futuro da própria agricultura sob a égide de que “o agronegócio é essencial para a economia do país”. Pois é mesmo, para o Brasil e para o mundo. Mas não esse que está aí.
Devemos lembrar que, durante a maior parte da história humana, o cultivo de alimentos e a criação de animais era feita de forma sustentável, com a técnica de rotação de lavouras e o uso de fertilizantes naturais. O advento da agricultura industrial, a emergência do capitalismo de mercado e o financiamento agrícola por grandes bancos mudaram tudo isso. Ao mesmo tempo, a colonização de extensas áreas continentais e a mão de obra escrava criaram as condições para o estabelecimento das grandes fazendas de monoculturas, as quais continuam até hoje, com a maior parte da mão de obra sendo progressivamente substituída pela mecanização.
A questão que se apresenta agora é: será possível fazer uma nova revolução agrícola sem recorrer aos mesmos recursos da revolução anterior?
A resposta a essa pergunta, que talvez surpreenda a muitos, é que sim, é perfeitamente possível, com a adoção de procedimentos e tecnologias que, inclusive, já estão disponíveis. Eis o que deve ser feito.
A – Interrupção total do desmatamento irregular e demais processos de destruição de ecossistemas (como a ocupação de manguezais): simplesmente não podemos mais tolerar a destruição de matas e outros ecossistemas naturais em nome de um falso “progresso econômico”. Fazendeiros, especuladores imobiliários e outros grupos que estão promovendo a destruição devem ser denunciados pela sociedade, que deve se unir para forçar governos municipais, estaduais e federal a fiscalizar as transgressões e punir os infratores, preservando os ecossistemas remanescentes.
A preservação de áreas de vegetação nativa, corredores ecológicos e habitats naturais para garantir a manutenção da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas é essencial para manter o equilíbrio ecológico e pode ser realizada sem prejudicar a produtividade agrícola. Muita gente ainda pensa que para se aumentar a produção de alimentos é necessário ampliar a área plantada, quando na verdade o uso de técnicas mais avançadas de manejo resulta em melhorias muito mais significativas do que a simples expansão das lavouras utilizando as técnicas atuais (mais sobre isso no próximo artigo desta série).
B – Restauração de ecossistemas degradados para recuperação das reservas legais e das áreas protegidas que foram devastadas: existem áreas do país, principalmente na Amazônia, em que 100% das florestas ainda estão preservadas. Em alguns casos, quando não se tratar de reservas naturais ou áreas indígenas, tais áreas podem ser exploradas economicamente de forma sustentável, desde que se mantenha a reserva legal, que na Amazônia varia de 50 a 80%.
Mas no resto do país há vastas áreas onde ecossistemas precisam ser restaurados, com destaque para matas ciliares, recomposição da reserva legal e recuperação de manguezais.
A recuperação de ecossistemas degradados é importante para se manter o equilíbrio natural, incluindo a saúde dos solos(4), a preservação dos recursos hídricos, a resistência a desastres naturais, a atuação dos polinizadores e muitos outros serviços dos ecossistemas.
C – Redução extrema (esse é o termo correto!) do uso de fertilizantes artificiais e agrotóxicos: como eu disse acima, fertilizantes artificiais, principalmente à base de nitrogênio, junto com agrotóxicos, para o controle de pragas, foram essenciais para a revolução agrícola do século XX. Sua utilização permitiu significativos ganhos de produtividade em todo o mundo. Mas seu uso excessivo e abrangente está causando graves danos aos sistemas naturais.
No caso dos fertilizantes nitrogenados, sua utilização resulta na emissão de óxido nitroso, que é um poderoso gás de efeito estufa. Além disso, ao contaminar as águas, os compostos nitrogenados causam um fenômeno denominado eutrofização, que destrói ecossistemas terrestres e marinhos (5).
E o nitrogênio, ainda por cima, é utilizado de forma muito ineficiente. Estima-se que 80% do nitrogênio seja desperdiçado no atual sistema de produção de alimentos.
É possível reduzir em muito a quantidade de fertilizantes artificiais aplicada nas lavouras. Atualmente, a utilização de tecnologias avançadas como sensores, drones e inteligência artificial (a chamada agricultura de precisão – que veremos em detalhe no próximo artigo) permite que se otimize o uso dessas substâncias, onde ainda for necessário.
Além disso, o uso mais eficiente do esterco animal e a utilização de culturas fixadoras de nitrogênio – tais como leguminosas que convertem o nitrogênio do ar em uma forma biologicamente útil – serão cruciais para substituir o nitrogênio sintético como parte do processo de reconstrução da fertilidade do solo.
Os agrotóxicos, como é bem sabido, são extremamente nefastos para o meio ambiente e para a saúde das pessoas. Uma solução para se utilizar menos agrotóxicos é optar pela agricultura orgânica, que simplesmente não usa nem fertilizantes artificiais, nem agrotóxicos. Para muitas lavouras, principalmente de legumes e verduras, isso é perfeitamente viável, sem perda da produtividade (mais sobre isso no próximo artigo).
E, nos casos em que sua utilização ainda for necessária, a agricultura de precisão pode também reduzir significativamente as quantidades de agrotóxicos aplicadas nas lavouras.
D – Investimento substancial em pesquisa de plantas e animais mais resistentes às variações climáticas e às pragas: as mudanças climáticas vão obrigar plantas e animais a se adaptarem, caso contrário, irão perecer. Mas esta adaptação é demorada e vai implicar, nos ambientes naturais, em uma significativa redução do número de indivíduos e até na extinção de muitas espécies.
Eventualmente, com o passar do tempo, os ecossistemas vão se recuperar. Mas para as plantas e animais utilizados na agricultura não dispomos desse tempo. Nesse caso, será preciso pesquisa genética (6) para se desenvolver organismos mais resistentes às novas condições de clima, incluindo eventos extremos, calor e secas e maior irregularidade climática.
E – Utilização de espécies locais tanto na produção quanto no consumo de alimentos: espécies nativas ou já bem adaptadas aos ambientes onde vivem tendem a ser mais resistentes às variações climáticas, mesmo quando essas se tornam mais extremas. Isso também vale para as pragas e outros organismos que podem prejudicar seu desenvolvimento. Mesmo que precisem ser adaptadas geneticamente, o grau de modificação das espécies locais será menor do que o das plantas menos adaptadas.
Seja qual for o caso, a ênfase deve ser em consumir os alimentos próximos ao local em que foram produzidos. Isso reduz o uso de energia (e consequentemente a emissão de gases de efeito estufa) no seu armazenamento e transporte, além de reduzir a necessidade de utilização de produtos químicos conservantes. Evidentemente, é uma transformação que nunca poderá ser feita de forma completa. Sempre haverá alimentos que precisarão ser armazenados e transportados a longas distâncias. Mas, com melhor informação e tecnologia, o trajeto entre o campo e a mesa pode ser muito reduzido (mais sobre isso no próximo artigo).
F – Substituição das monoculturas por culturas rotativas que permitam a melhor preservação dos solos: monoculturas causam a exaustão do solo e geralmente requerem grandes quantidades de fertilizantes e agrotóxicos. As monoculturas devem ser substituídas por técnicas de agricultura regenerativa e pela integração lavoura-pecuária-floresta.
A agricultura regenerativa promove a saúde do solo através de práticas como o plantio direto e a cobertura do solo, que ajudam a melhorar a saúde do solo, aumentando a sua capacidade de retenção de água e carbono. A integração lavoura-pecuária-floresta (sistemas agroflorestais), por sua vez, combina diferentes atividades agrícolas em uma mesma área, otimizando o uso da terra, promovendo a biodiversidade e melhorando a qualidade do solo (como veremos em mais detalhe no próximo artigo).
G – Redução drástica no consumo de carnes e laticínios: a maior parte da produção das monoculturas serve para alimentar animais. Portanto, a redução do consumo de carnes e laticínios resultaria numa redução das áreas de monocultura, que poderiam ser mais bem aproveitadas para produzir alimentos consumidos pelos humanos.
Das atividades de produção animal, a criação de bovinos e a pesca predatória são os maiores destruidores de ecossistemas do planeta.
Por isso, se quisermos causar um impacto imediato na preservação do planeta, devemos reduzir ao máximo o consumo de carne vermelha e de pescados não sustentáveis. E de forma significativa o de outras carnes e de laticínios. Notem, reduzir não significa eliminar. Não é preciso que todos nos tornemos veganos para causarmos um impacto significativo no sistema alimentar.
É importante pressionar os governos para que fiscalizem e exijam dessas indústrias a busca da sustentabilidade. Pouco importa o poder financeiro e político que tenham. Já está demonstrado que nada resiste a um movimento decidido de consumidores e cidadãos.
Agricultura sustentável ao alcance de todos
A adoção das medidas apresentadas neste artigo possibilitaria tornar a agricultura sustentável mais produtiva, garantindo que não faltarão alimentos para um mundo em que a população ainda vai crescer significativamente.
Não temos alternativa. Ou fazemos isso, ou o atual sistema de produção e consumo pode levar ao colapso da produção de alimentos e a uma tragédia de fome que não vemos em décadas ou mesmo séculos.
Mas para que isso aconteça, será necessário mudar significativamente a forma como produzimos e consumimos alimentos, o que somente acontecerá se houver uma intensa mobilização da sociedade e uma série de iniciativas governamentais. No próximo artigo desta série, vamos ver com mais detalhes as principais técnicas de agricultura sustentável e como implementá-las.
1 . Este é o quinto artigo da série em que eu discuto soluções e estratégias para o enfrentamento da crise ambiental global. O livro “Planeta Hostil”, assim como uma série de colunas publicadas na Sler, apresentam uma visão detalhada dos problemas cujas soluções são discutidas neste artigo.
2. Veja mais detalhes no livro “Planeta Hostil”.
3. É importante não demonizar ao agronegócio. Há milhares de agricultores no Brasil que respeitam as normas ambientais e praticam agricultura sustentável. Seus exemplos devem ser ressaltados e utilizados para se demonstrar a viabilidade dessa opção para o agronegócio.
4. Por saúde dos solos entendemos a capacidade do solo de funcionar como um ecossistema completo, sustentando a produtividade de plantas e animais, mantendo ou melhorando a qualidade da água e do ar, e promovendo a saúde vegetal, animal e humana.
5. A eutrofização é um fenômeno que ocorre quando um corpo de água recebe uma grande quantidade de efluentes com matéria orgânica enriquecida com minerais e nutrientes, que induzem o crescimento excessivo de algas e plantas aquáticas. Esse processo pode resultar em esgotamento do oxigênio do corpo d’água após a degradação bacteriana das algas, transformando o corpo d’água numa massa sem vida.
6. Não há sentido em se combater a utilização de plantas geneticamente modificadas. A humanidade usa a manipulação genética de animais e plantas desde os primórdios da agricultura. A maior parte das espécies que cultivamos e criamos, como o trigo, o milho, as vacas e galinhas são muito diferentes dos seus originais selvagens. Foram obtidas por manipulação genética. Só que no passado (e ainda hoje) foi utilizada reprodução seletiva, escolhendo as melhores plantas e animais, enquanto a ciência atual, com o uso de engenharia genética, faz isso de forma muito mais rápida e eficiente.
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Foto da Capa: Agencia Brasil