Água até aqui é o nome de uma iniciativa de alerta visual aos perigos do aquecimento global. (@aguaateaqui). Temos visto inúmeras cidades do mundo colando adesivos com essa frase em diversos pontos centrais e turísticos para que as pessoas possam ter uma noção do alcance das águas e consequentemente dos estragos e danos materiais e psicológicos das enchentes deste último mês no Rio Grande do Sul.
Por que essa iniciativa é tão importante? Desde quando precisamos visualizar algo que não vivemos na concretude para que possamos sentir seu impacto? A resposta talvez seja: desde sempre. Tantas são as coisas intangíveis que no que for possível materializar em imagem, quantidade e espaço, é o que deve ser feito para que possa ser apreendido. No caso específico das enchentes, a ideia de cada cidadão imaginar o alcance da água no seu território conhecido exerce um impacto muito diferente.
Se for para falar de coisas de intangível medida, por que não nadar um pouco nas águas incertas do amor? Quem sabe uma iniciativa do tipo “amei até aqui”, “Doeu até aqui”, “saudade até aqui”? Tanta gente que ainda está secando mágoas de alagamentos por dentro e por fora procura por adesivos de água até aqui para dores, saudades, abandonos e fracassos.
Perigo. Cena do crime. Tentativa de homicídio de uma saudade deixa dois feridos no centro de Porto Alegre. Não há suspeitos. Querem privatizar tudo que é relacionado ao amor que é pra ver se resolvem os problemas de mau uso dos bens públicos. Mas tudo é muito, especialmente ao falar de água, amor e saudade. Passamos o mês sufocados em água, mas com as torneiras vazias. Faltou luz. Sobrou angústia. Ninguém quer evacuar, nem mesmo quando sabe que a água pode chegar. Estarei agora já falando novamente de amor?
Talvez essa seja uma analogia infeliz em um momento como esse. Acontece que ando cansada de enchentes como também dos amores que alagam tudo e de gente sem saneamento de si. Esgotos entupidos, lixo acumulado de dores não recicladas. Não é fácil amar em tempos de contêineres.
Os profissionais da saúde mental deviam produzir adesivos de água até aqui para mágoas, traumas e lutos. Pena que não há lugar exato para colar, é no corpo inteiro mesmo. Quem sabe o mais apropriado seria aquele velho e conhecido adesivo de “frágil” usado nas mudanças. É preciso continuar a meter o coração pelos atalhos, como diz Rui Pires Cabral. Enxergar os perigos, quando possível. Saber que os adesivos na verdade já estão por aí há muito tempo, nós é que os ignoramos por neurose, cegueira ou trapaça.
Ninguém que deseja amar de verdade pode querer dar pé nem dar no pé sem antes aprender a navegar. Adesivos de aviso de fundura são termos de responsabilidade afetiva que, bem sabemos, nem todos cumprem. Seria ético um “mágoa até aqui, não ultrapasse”, ou “entre com cuidado, móveis danificados”. A gente enxerga mal, avisa mal ao outro. Todo mundo quer sair caminhando pelas ruas sem colete salva vidas nem tubo de oxigênio. Amor não tem gerência, cidades sim deveriam ter. Entendo essa minha analogia meio capenga e cansada para migrar do único tema possível do mês de Maio para o tema mais impossível da vida: o amor.
Enxergar adesivos de limites no outro e em si é bom, pode ser protetor, mas dói até a alma arrancar da pele uma vez que as tempestades baixam. E a cola nunca sai completamente.
Foto da Capa: Daniel Pinheiro/Divulgação
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