Quando criança, ouvi minha professora contar que uma grande floresta pegava fogo. Animais corriam desesperados em direção a uma grande clareira com um lago, onde os que conseguiam chegar se refugiavam, bebiam água e descansavam.
Uma onça bebia água… Ofegante e com o pelo chamuscado, viu um beija-flor agitar as asas, colher água em seu bico e voltar a sobrevoar a floresta, jogando lá de cima as gotas que tinha coletado.
A pequena ave ia e vinha, a bater freneticamente suas asinhas, e a onça, ao ver aquele esforço inútil, dirigiu-se ao beija-flor, indagando-o: “Meu caro” – disse – “você acha realmente que vai apagar o incêndio da floresta com essas minúsculas gotas?” – ao que o beija-flor respondeu:
“Se vou apagar o incêndio… não sei! Mas pelo menos eu fiz a minha parte!”
Foi esse o espírito que moveu milhares de voluntários no Rio Grande do Sul, durante a tragédia das enchentes de 2024. O voluntariado gaúcho já havia se mobilizado quando da nefasta enchente no Vale do Taquari, em setembro de 2023, que atingiu as cidades de Muçum, Roca Sales e Lajeado, e que resultou em 54 mortes e mais de 400 mil indivíduos afetados. Muitos destes voluntários da primeira enchente se tornaram vítimas na enchente de maio de 2024.
Nos abrigos, nos resgates e nos centros de distribuição, a jornada era árdua e feita com muita boa vontade, esforço físico e emocional. Carregavam caixas, sacos, colchões, cestas básicas. Trabalhavam em locais longe de suas residências e só tinham hora de chegar, nunca de sair.
Pessoas comuns se jogavam nas águas geladas e escuras do Guaíba nos mais variados tipos de embarcações, desde caiaques, barcos a remo e barcos a motor. Em pouco tempo, cidadãos comuns mobilizaram equipamentos e improvisaram as mais variadas soluções. Faltava tudo!
Não havia holofotes, então iluminavam os barcos na água com os faróis de carros e caminhões. Muitos dos “resgateiros” não tinham colete salva-vidas, muitos nem sabiam nadar, eu conheci um que tem marca-passo e mesmo assim se arriscou com água até o peito.
Tudo o que fizemos, fizemos sem nunca termos vivido situação semelhante, sem nunca termos recebido algum treinamento e com certeza nos arriscando bastante, mas era a nossa água de beija-flor, nós não sabíamos bem o que devia ser feito, mas mesmo assim, fazíamos.
Foram várias frentes de voluntariado atuando nas mais variadas funções, desde a organização, conexão via internet entre pedidos de socorro e equipes de resgate, preparação e distribuição de marmitas, recebimento e organização de doações, resgate de pessoas e animais, e gestão dos abrigos, cada vez mais organizados.
A cada dia, dezenas de novos abrigos surgiam, era difícil acompanhar e atualizar as informações. Apesar do caos instalado pela tragédia, a cada hora surgiam mais e mais pessoas para ajudar a organizar as ações.
Em seguida, recebemos resposta de voluntários de outros Estados, que chegavam todos os dias para ajudar em todas as frentes de trabalho. Veio gente de norte a sul, de leste a oeste do país. Vieram de carro, em comboios organizados, de moto.
Uma rede nacional de voluntários se estabeleceu e passou a enviar doações por via aérea e terrestre.
Quem não tinha sua casa invadida pelas águas ofereceu abrigo a quem não tinha. Muitas famílias acolheram outras famílias. E a cada resgate, eram entregues e distribuídos remédios, alimentos e demais insumos necessários a quem estava ilhado e não queria sair de sua residência.
Nos grupos tínhamos psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, veterinários, cuidadores, cozinheiros, assistentes sociais, professores, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e mais uma centena de profissionais que se disponibilizaram para atender pessoas e animais nos abrigos e até nas ruas, onde por muito tempo, algumas famílias ficaram.
Hoje, um ano depois deste evento cataclismático, o Coletivo POA Inquieta mobiliza seu capital humano no esforço de, não apenas reconstruir fisicamente o que se foi, mas também de estabelecer ações de reflexão, discussão e conexão de esforços para cidades mais resilientes e seguras.
Trabalhei em 3 abrigos, todos eles cem por cento organizados pela sociedade civil, com o apoio muitas vezes de igrejas, escolas, CTGs e CTs de futebol, sedes de clubes, entre outras instituições que cederam seus espaços para serem transformados em abrigos para os resgatados, desabrigados e desalojados.
Nos abrigos em que trabalhei, cem por cento dos abrigados voltaram para suas casas, para casas de familiares ou ainda para imóveis alugados. Todos tiveram ajuda de mutirões de limpeza para retirar a lama de suas casas.
Seus animais de estimação foram desverminados, castrados, vacinados, medicados, fizeram cirurgias para a retirada de tumores.
As famílias, ao voltarem para casa, receberam estoque de alimentos, remédios e atendimento psicológico.
No único e exemplar abrigo de idosos de Porto Alegre, onde recebemos 40 idosos, tínhamos um atendimento de excelência 24 horas, com equipe médica multidisciplinar, arte terapia, eventos festivos, cinema com pipoca, e, ao voltarem para casa, todos receberam alimentos, medicamentos e até fogões e geladeiras novos, doados por uma loja da cidade. Assistentes sociais orientaram as famílias para o correto recebimento das ajudas governamentais. Esse atendimento fantástico se estendeu a outros idosos de outras instituições.
Infelizmente, muitos destes esforços maravilhosos e bem-sucedidos tiveram que enfrentar percalços, como a falta de dinheiro para sua manutenção, já que foram executados com doações, e o esperado e justo cansaço de sua linha de frente, os voluntários que, ao fim de 3 meses, tiveram que voltar a trabalhar e a cuidar de suas famílias.
Neste momento, o Poder Público e as ditas autoridades se limitaram a fechar os abrigos e a exigir os imóveis emprestados de volta. Sem ter como continuar os trabalhos iniciados, muitos abrigos – e cito agora especificamente os de animais – voluntários tiveram que realocar centenas de animais resgatados, e muitos ainda hoje bancam suas despesas do próprio bolso. Ainda no caso de animais, uma rede nacional de adoção se formou e muitos foram adotados e levados para outras cidades.
A rede de solidariedade que se formou espontaneamente no RS durante a Enchente de 2024 evidenciou que:
Somos muito mais fortes e capazes do que imaginávamos!
Podemos nos orgulhar do grande trabalho que fizemos, salvando vidas!
Mesmo assim, nem só de boa vontade vive o Voluntariado, principalmente em tragédias deste porte, como foi a enchente de 2024 no RS.
Um ano depois, ainda estamos aqui, os inquietos de Porto Alegre, atentos e conectados com outros coletivos e movimentos sociais para a reconstrução de nosso Estado, buscando caminhos (mais inteligentes!) e modelos urbanos (diferentes!) dos que tivemos até aqui.
É urgente preparar as pessoas para planos de contingência e treinamentos de evacuação e resgate, que são necessários nas escolas e nas comunidades.
Somos peças vitais de uma grande engrenagem, a engrenagem da vida.
Como a água de beija-flor, com várias gotas, fazemos os oceanos.
Saudamos assim a todo o voluntariado da Enchente de 2024, e os nomeamos, com muita honra, “água de beija-flor”.
Nós, voluntários, fizemos a nossa parte, e quem sabe, bem mais.
Patricia Mansur, 57 anos, é gaúcha de Porto Alegre e inquieta desde o nascimento. No voluntariado desde os 14 anos, participa dos spins “Resíduos” e “Animais” do Poa Inquieta. Professora, mãe, mulher, ativista. Especialista em Estimulação Cognitiva para Idosos, Pós-graduada em ESG pelo IBMEC, membro voluntária da Associação Brasil sem Frestas Porto Alegre.
Todos os textos dos membros do POA Inquieta estão AQUI.
Foto da Capa: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil