Sou e sempre fui carnavalesca. Da pré-adolescência no salão da Sociedade Cruzeiro em São Francisco de Paula ao som de marchinhas das tradicionais bandas do interior, à Praça Castro Alves em Salvador atrás dos trios elétricos e blocos que inundavam de alegria as ruas da capital baiana. Não sou saudosista, mas adoraria tomar as ruas hoje com um canto de paz dançante, celebrando a vida em um país digno, que respeite a diversidade da sua gente.
Conheci o carnaval baiano, ápice do ciclo de festas do verão, nos anos 1970/1980. Lá passei os melhores carnavais da minha vida, encantada com uma das mais populares folias brasileiras. Transbordando de alegria e molhados de suor, todos brincavam ao som dos trios, afoxés, blocos e cordões. Um inesquecível baile ao ar livre, que se espalhava pelos becos, praças e avenidas, contagiando até a mais empedernida das criaturas.
Do Pelourinho, passando pelo Terreiro de Jesus, pelas praças da Sé, Castro Alves e Municipal, Rua Chile, Avenida Sete de Setembro, até a beira do mar, o chão era da massa enlouquecida. Um roteiro que leva para as ruas os tipos mais diferentes, fantasiados ou não, embalados pela magia e pelo calor humano que tomam conta da cidade. Todos dançam, cantam, vivem o carnaval na sua plenitude, noite e dia, como se não houvesse amanhã.
Salvador foi descoberta pelo turismo na década de 1970 e se transformou num atraente polo turístico no verão
Turistas, curiosos e curtidores, hippies e viajantes do Brasil e do mundo, lá chegavam buscando o paraíso perdido à beira mar, um lugar de prazer onde tudo fosse permitido. A anarquia, o delírio, a catarse geral provocada pelo carnaval, constituíram a essência desta busca desenfreada. Uma invasão que mudou a fisionomia da capital baiana e se espalhou por lugares que também se consagraram, como Arembepe e sua Aldeia Hippie, um lugar sagrado para meditar e descansar, onde cabia de tudo.
Foi na Praça Castro Alves que vi, senti e participei intensamente do carnaval de Salvador. Lá se juntavam artistas, intelectuais, turistas, comerciantes, homossexuais, mulheres, homens, velhos e jovens. Tipos física e socialmente diversos que brincavam juntos como se sempre tivesse sido assim. “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”, cantava Caetano Veloso, que define como poucos o espírito do carnaval na sua terra. Um espetáculo de rara beleza plástica e humana, pelo qual ninguém passa impune. Para Gilberto Gil, é uma manifestação séria e complexa, “um espaço muito curto para a transfiguração, para a loucura, para a reconciliação total com a carne, que é ignorada o ano todo”. Há uma explosão de vida e os vícios e virtudes humanas fluem naturalmente. Afinal, tudo é permitido.
Além da conotação de festa popular, o carnaval é uma vitoriosa afirmação cultural dos negros, responsáveis por sua essência
Proibidos de frequentar os salões do branco, pela condição de escravos, os negros dançavam e cantavam na rua, mantendo vivas suas origens africanas. Com graça, magia e muita pulsação, passavam noites inteiras entregues a rituais típicos das regiões de onde vinham. E as ruas guardam a alma dessa festa. Lá estão os blocos afros, o som ijexá, a percussão, o batuque, os metais dos afoxés, espalhando sua arte legítima, inteira e envolvente, apesar da triste repressão a que foram submetidos.
É uma manifestação rica em originalidade, beleza e força, que flui através de uma coreografia harmoniosa. E todos são convidados a dançar. Participação é a característica fundamental desta festa colorida, cheia de ritmo, que os negros levaram para inúmeros espaços e transformaram em uma celebração coletiva. Com ou sem dinheiro. Com ou sem fantasia. O luxo e a riqueza também fazem parte, mas não são essenciais. O que importa são as pessoas que se integram ao mais autêntico e democrático salão de baile do país. Alguns antropólogos afirmam que o carnaval é um espaço ritualístico raro onde as diferenças culturais, sociais e comportamentais se dissolvem. Pobres, ricos, machos, fêmeas, homossexuais, negros e brancos todos se irmanam nas ruas e avenidas.
Em um país como o Brasil, onde uma minoria concentra poder e dinheiro e a maioria se debate na miséria, é impossível ignorar as diferenças. Mas no carnaval que brinquei nos anos 1970/1980 ainda tínhamos a ilusão de que somos todos irmãos. E quem ia para a rua queria se entorpecer um pouco. Ainda hoje são milhares de pessoas que buscam suspender delirantemente o cotidiano para se perder de prazer e liberdade. “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, canta Caetano. E o povo está vivo e faz a festa com brilho nos olhos. “Mas é Carnaval! / Não me diga mais quem é você! / Amanhã tudo volta ao normal. / Deixa a festa acabar, / Deixa o barco correr”, canta Chico Buarque.
E foi lá, no início dos anos 1970, que comecei a entender a riqueza da diferença. Salve o carnaval baiano!
Nessas duas décadas, 1970/1980, o carnaval de Salvador contava com a presença de homossexuais que vinham de todas as partes e aproveitavam a loucura geral para liberar sua orientação sexual, tão reprimida e condenada. No início, saíam às ruas mascarados, dando um toque especial à folia. Aos poucos, foram tirando as máscaras e os desfiles das “bichas” tomaram as escadarias da Praça Castro Alves, passarela para os gritos de liberdade. Ali faziam o espetáculo, mostrando que eram homens que desejavam homens e queriam manifestar seus sentimentos. Entre risos, espanto, agressão e afirmação, os gays se fizeram respeitar. Sem máscara e sem medo andavam pelas ruas, abraçando e beijando ao som dos afoxés, nos cinco dias de catarse coletiva. Era a celebração da diversidade e eu ainda não tinha a consciência que tenho hoje.