Estatisticamente, é pouco provável que eu tenha sido o único a topar com testemunhos semelhantes, então acho que vale a discussão: durante os breves e irregulares meses de um lockdown incompleto e negligenciado no primeiro ano da pandemia e com as muitas experiências de home office realizadas até faz bem pouco, muitos se dispuseram a aproveitar parte do tempo economizado em transporte e deslocamentos para ler mais. E a maioria dos que vi declarando esse propósito meses mais tarde confessavam, preocupados, ter fracassado vigorosamente. Não apenas porque deram prioridade ao vasto oceano de material concorrente, de séries na Netflix a jogos hiper-realistas em consoles variados de videogames; de podcasts de quatro horas ou dez episódios de duração à montagem de playlists no seu serviço de streaming favorito.
Sim, é fato, há um aluvião diário de entretenimento digital ao qual é difícil resistir mesmo por curtos intervalos, mas até quem deu de mão em seu exemplar num determinado dia e conseguiu cumprir sua autoimposta sessão de leitura confessava ter sentido a atenção desconexa, a concentração perdida e reencontrada linhas ou páginas mais adiante sem a menor ideia do que havia transcorrido entre um ponto e outro, a impaciência para os códigos necessários da linguagem literária. Foi aí que muita gente descobriu, algo alarmada, que a fiação de seu cérebro está sendo gradativamente reconfigurada e o novo protocolo de funcionamento não parece levar na boa duas horas simplesmente lendo um livro.
Claro que a situação não era ideal para introspecção: a maior crise sanitária em cem anos, hospitais lotados, mortes, desemprego, economia em declínio e, aliada a isso, uma ofensiva de contrainformação mentirosa que contou com beneplácito dos órgãos oficiais, para dizer o mínimo, mas não acho que os tempos difíceis da pandemia tenham sido os responsáveis, estão mais para aquele momento em que mais gente ao mesmo tempo tomou consciência de um fenômeno já em curso há duas décadas: estamos lendo menos não só porque não estamos interessados, mas porque, perigosamente, está ficando mais difícil.
Em um Brasil em que o governo federal não teve sequer a competência para realizar um censo, querer dados estatísticos precisos sobre esse fenômeno é uma ficção, então temos de ir buscar em outros lugares. Há exatos 10 anos, a empresa Staples, grande varejista internacional de material para escritório, encomendou uma pesquisa como parte de uma ação de marketing para uma campanha de venda de tablets, tentando determinar a velocidade média de leitura dos norte-americanos. Embora a metodologia não tenha sido suficientemente divulgada e eu desconfie um pouco de pesquisas feitas como ação de marketing, o resultado aferido pelo levantamento foi de que o americano médio adulto lê uma média de 300 palavras por minuto.
Em termos históricos, é um declínio, já que uma pesquisa semelhante nos anos 1960 havia mensurado uma média de 400 palavras por minuto. E isso que estamos no mais superficial dos índices, o da pura e simples capacidade de começar um texto e ir do ponto A ao ponto B, desconsiderando aquilo que está no centro dessa sensação de desamparo que muitos sentem ao detectar o declínio gradual da sua atenção: o quanto alguém é capaz de compreender o que lê.
A maioria das análises sobre esse tema desemboca mais ou menos nas mesmas causas: a principal responsável é a internet. Trabalhei em redações por três décadas – ninguém nunca soube apontar um dado significativo, mas todos os “apóstolos do digital” que se espalharam como herpes a partir do início dos anos 2000 insistiam e ainda insistem que “o público de internet não lê texto longo”. O escritor Nicholas Carr, especializado em temas de tecnologia e sociedade, inverte essa máxima em seu livro mais conhecido, A Geração Superficial – O que a Internet está fazendo com os nossos cérebros. Para ele, não é apenas “o público de internet” que não consegue mais focar a concentração em textos longos, é todo o público. Não há um “público de internet”, há uma internet moldando o público de acordo com seus padrões de uso.
A forma como o hiperlink se tornou a ferramenta hegemônica de consumo digital estabelece nos usuários cacoetes padronizados que acabam extrapolando seu uso original e se tornando hábitos mentais. Você pula de informação em informação, junta fragmentos com pouco contexto, pesquisa passagens específicas numa obra mais ampla, consome todo tipo de informação tão rápido que um minuto para chegar ao que quer já parece uma eternidade. Numa reabilitação dos insights de McLuhan, antes onipresentes e hoje confinados na academia, não é o uso da tecnologia o centro da questão, nem nunca foi, mas o fato de que a tecnologia, meramente por existir, molda os padrões do usuário a tal ponto que condiciona seu uso, e molda os parâmetros das interações sociais e pessoais. Parafraseando o que diz o neurocientista Antônio Damásio em E o cérebro criou o homem (2010): a revolução digital está mudando não apenas nosso modo de pensar, o que já seria muito. Está mudando nosso próprio cérebro.
Marqueteada como o abismo que guarda todo conhecimento em suas profundezas, a internet comercial desde o início foi marcada por viagens de superfície (não à toa “navegar” se tornou o verbo para seu uso, um passeio por amplas distâncias, mas sempre à flor da água. E já estamos muito distantes da época em que páginas traziam links para outras páginas (o que, ao menos, exigia uma ação por parte do usuário, por mínima que seja, a de clicar). Com a ascensão das redes sociais e a evolução da tecnologia de celulares, triunfou o algoritmo, responsável por ler suas preferências e continuar oferecendo coisas parecidas com aquilo que você já viu e pode ter gostado.
Agora, quase três décadas depois da disseminação da internet, é fácil achar que esse foi um trajeto linear, mas na verdade houve no próprio interior do meio uma luta pela hegemonia entre o texto e o verbivocovisual, digamos. O nascimento do e-mail, seguido pela breve era dos blogs, foi saudada até por rabugentos como Umberto Eco como uma possibilidade de reabilitação da palavra escrita – a escrita florescia tão abundantemente nas redes daquele modelo que gerou o infame debate “blog é literatura?”, morto por senilidade precoce. Mas aí a tecnologia para veiculação de vídeos na rede se aperfeiçoou, surgiu o Youtube, surgiram redes sociais, as redes sociais passaram a admitir vídeos em suas linhas de tempo, e hoje a batalha parece estar sendo vencida pelo audiovisual. Ao ponto de a “rede dos textões”, o Facebook, ser hoje “coisa de velho” e a nova onda a ser surfada é a das novelinhas de um minuto, das dancinhas de tik tok e a das lives, muitas lives (tenho eu próprio um canal no Youtube, neste momento em reavaliação de curso. Não tenho o que dizer em live, mas sei que poderia estar fazendo ele “bombar ” mais se me dedicasse a elas).
Uma leitura condicionada a pulos de cabrito em combinação com uma nova e avassaladora era da hegemonia da imagem, e o resultado é que nosso processo de consumir informação é hoje mais passivo, menos focado, mais “rizomático”, digamos. Há benefícios nesse tipo de evolução, mas as causas são também inegáveis. Se todos estamos apenas navegando, não estamos, de modo simultâneo, desaprendendo o essencial para os mergulhos? Penso que saberemos em breve.
Não quero soar catastrofista, antes fatalista. Os efeitos já estão por aí: abandono gradual da atividade de leitura em profundidade, consumo superficial de informação, preferência pela linguagem audiovisual mesmo nos casos em que o conteúdo é de fato interessante. Não digo que seremos melhores ou piores com a cristalização aparentemente irreversível desse quadro. Minha dúvida é se ainda seremos leitores.
Foto da Capa: Antônio Damásio/Wikipedia
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