Há um ano, as águas invadiram o asfalto rodeado de pedras e construções. Reivindicaram espaços alterados, aterros e fundações que fingiam solidez. Tomaram ruas, praças, avenidas — varreram os limites traçados a régua e prepotência. Arrancaram árvores recém-plantadas, dobraram postes de luz como se fossem gravetos. Invadiram casas, silenciaram motores, engoliram pontes. Nada deteve a marcha lenta da destruição.
A Rua dos Andradas voltou no tempo, tornando-se novamente a antiga Rua da Praia, onde há muitos anos, como nos dias em que cidadãos passeavam despreocupados à beira de um porto verdadeiramente alegre. Onde antes se ouviam passos apressados e vozes cruzando vitrines, deslizavam botes inquietos, guiados por mãos treinadas em busca dos ilhados. Poucos se atreviam a caminhar pelas águas turvas, onde armadilhas invisíveis e destroços traíam a confiança dos desprevenidos. O Guaíba, transbordado, já não respeitava margens. Espalhava-se com soberania sobre o concreto, como se retomasse o que sempre lhe pertenceu.
O muro de contenção não foi suficiente, mas travou uma tragédia ainda maior. Ainda assim, a cidade assistiu, incrédula, à reinvenção selvagem de suas ruas. Jacarés passeavam entre carros submersos. Peixes nadavam livres por avenidas outrora congestionadas. Pássaros cortavam o céu cinzento, sobrevoando ondas agitadas de um lago que nunca foi tão indócil. A natureza mostrava sua força. E não houve tecnologia, governo ou oração capaz de contê-la.
Há um ano, pessoas saíram de suas casas para nunca mais retornarem. Lares transformados em escombros no meio da água barrenta. Ali, entre telhados tombados e móveis inchados de tristeza, ficaram submersas as memórias: fotografias que nunca serão reencontradas, cartas escritas à mão, objetos carregados de afetos antigos. Tudo levado, tudo soterrado sob a lama silenciosa do esquecimento.
Para grande parte da população rio-grandense, aqueles dias de maio jamais serão esquecidos. E para que essa catástrofe não se apague da memória coletiva como um pesadelo varrido ao amanhecer, escritores, jornalistas, documentaristas e artistas têm se dedicado a registrar, com palavras, imagens e sons, o rastro deixado pelas águas. Cada relato é um gesto de resistência contra o esquecimento. Cada imagem, um testemunho da dor, da perda, mas também da solidariedade que emergiu no meio do caos. Mais do que narrar o desastre, é preciso costurar o que se rompeu. Contar para as próximas gerações o que houve quando o chão cedeu, quando o céu desabou e a cidade teve que aprender a recomeçar do barro.
Na semana passada, aqui na minha coluna, falei sobre o livro Enchentes, lançado por um grupo de escritores gaúchos do qual faço parte. Hoje, quero citar e indicar a leitura de um livro-reportagem escrito pelos jornalistas André Malinoski, Marcelo Gonzatto e Rodrigo Lopes. A obra reúne relatos pungentes de pessoas que testemunharam, de perto, o avanço implacável das águas. Suas vozes compõem um mosaico de dor, resistência e, sobretudo, verdade. Mais do que registrar histórias individuais, os autores traçam uma narrativa crítica e necessária, apontando ações eficazes, mas também as omissões graves por parte das autoridades. Não faltam reflexões sobre o desprezo às advertências de estudiosos, que há muito alertavam para o risco iminente — ignorado até que a tragédia se tornou irreversível.
Ler A Enchente de 24 é revisitar os dias em que o Estado afundou, não apenas sob a água, mas sob a negligência. É também compreender que, diante da catástrofe, a escuta e a memória se tornam formas de justiça. Mais do que um registro sobre um evento extremo, o livro trata de um lembrete de que o futuro — especialmente em tempos de colapso climático — exige atenção e responsabilidade. Porque se há algo mais devastador do que a força das águas, é a indiferença diante do que poderia ter sido evitado.
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Foto da Capa: Giulian Serafim / PMPA