O racismo é algo tão presente na sociedade brasileira que mais uma vez venho falar sobre esse assunto que merece ser repetido para os racistas todos os dias, até que se tornem pessoas melhores. Para tanto, é muito importante que, além da sociedade, os três poderes do Estado (executivo, legislativo e judiciário) combatam e punam condutas racistas incessantemente. Somente assim, algumas pessoas poderão conter sua maldade e, ainda que contrariadas, aprenderão a tratar com o devido respeito todas as pessoas e deixarão de direcionar a sua crueldade, baixa autoestima, inveja ou ignorância para outras pessoas, por meio do racismo.
O racismo é uma conduta discriminatória ou preconceituosa dirigida a um determinado grupo ou indivíduo em razão da sua raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, identidade sexual ou de gênero.
Chama-se de racismo estrutural aquele que decorre da opressão e exploração pelas classes dominantes, geralmente de uma certa etnia ou cor, em detrimento de pessoas de outras raças, cores, religiões, procedência ou identidade sexual ou de gênero. Ele é um processo que permite à sociedade privilegiar um determinado grupo, enquanto oprime a sua vítima. Por exemplo, uma sociedade se organiza para dar os melhores empregos aos brancos, trata com mais rigor as pessoas que, de acordo com a “visão racista”, seriam inferiores ou merecedoras de menos respeito ou privilégios.
Esse racismo estrutural tem reflexos até mesmo nas instituições, sejam públicas ou privadas. No Brasil, à exceção de Nilo Peçanha, não houve um presidente negro, e a história conta que ele, mesmo nessa posição, foi alvo de preconceito racial.
Nesses últimos dias, conforme fartamente noticiado pela imprensa nacional, houve um episódio racista contra a ministra substituta do TSE, Vera Lúcia Santana de Araújo, que, pasmem, seria palestrante no 25º Seminário Ética na Gestão da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. O tema do seminário era “Prevenção e Enfrentamento do Assédio e da Discriminação”. A ministra foi barrada pelos terceirizados que faziam o controle de acesso ao prédio. Eles se recusaram inclusive a verificar os documentos de identificação da ministra. Foi um episódio de puro racismo impedi-la de ter acesso a um espaço de uso público onde se localizava o seminário. Obviamente, ela foi impedida de ter acesso ao espaço usado pelo seminário exclusivamente por ser afrodescendente. Como salientado pela ministra Vera Lúcia, em entrevista, não foi um ato de injúria racial, onde haveria ofensas, foi um ato de racismo, silencioso, velado, em que se impediu alguém de realizar algo somente em razão da sua cor.
Como é cediço, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, já formalizou a denúncia ao presidente da Comissão de Ética da Presidência da República para dar ciência do ocorrido, e deixou claro que o episódio “pode configurar até mesmo crime.
Segundo noticiado pelo O Globo, o ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, afirmou que:
“Tal repugnante episódio ofende não apenas a dignidade da Ministra, mas também os princípios mais elementares de respeito a direitos fundamentais e igualdade racial que pautam o nosso Estado Democrático de Direito”, escreveu Messias, em documento assinado também pelo presidente da Comissão de Ética.”
Estamos no terceiro milênio, e é tão forte o racismo estrutural que raramente uma pessoa negra é indicada para a posição de Ministro ou Ministra do Supremo Tribunal Federal, ou para assumir um ministério com a força política e econômica como, por exemplo, o Ministério da Fazenda, da Saúde ou da Previdência. Esse tipo de racismo, que é reflexo do racismo estrutural, é chamado de racismo institucional.
Não posso acreditar que não existam nesse Brasil continental profissionais da raça negra ou “afrodescendentes”, para quem acha esse termo pejorativo, aptos a ocupar tais postos ou a presidência de bancos como o Banco Central, o Banco do Brasil ou da Caixa Federal, por exemplo.
Sai governo, entra governo, em um país com uma descendência africana imensa, e quase sempre são os brancos que recebem as melhores posições. Se for negra e mulher, mais difícil ainda, se for negro ou negra LGBTQIA+, lascou-se, pode sofrer preconceito até mesmo dentro da própria família. A impressão que tenho é que grande parte dos políticos só lembra das minorias étnicas, como os negros e povos originários (indígenas), em anos eleitorais. Depois que se elege, a elite governante repete o mesmo comportamento da anterior.
Para ajudar na conscientização das pessoas, vale lembrar as condutas que caracterizam os crimes de racismo ou injúria racial, no Brasil, o que já destaquei inclusive em artigo aqui na Sler.
O crime de racismo pode ocorrer de diversas formas e a legislação prevê penalidades diferentes dependendo da conduta. São várias as condutas previstas em lei, e vale mencioná-las, pois muita gente é vítima desses crimes e não sabe que poderia se socorrer da justiça:
I – Se o crime for impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos, a pena será de reclusão (prisão) de dois a cinco anos.
II – Sofrerá a mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional, negar ou obstar emprego em empresa privada, deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores; impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar de outra forma benefício profissional; proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário.
III – Quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências, ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial;
IV – Se a conduta for recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador, a pena será de reclusão de um a três anos.
V – Quem recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau, incorrerá na pena de reclusão de três a cinco anos, e se o crime for praticado contra menor de dezoito anos, a pena é agravada de 1/3 (um terço).
VI – Quem impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar, incorrerá na pena de reclusão de três a cinco anos.
VII – se a conduta for impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público, a pena será reclusão de um a três anos.
VIII – quem impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões ou clubes sociais abertos ao público incorrerá na pena de reclusão de um a três anos.
IX – Quem impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades incorrerá na pena de reclusão de um a três anos.
X – Quem impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos incorrerá na pena de reclusão de um a três anos.
XI – Quem impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios, barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido, incorrerá na pena de reclusão de um a três anos.
XII – Quem impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas incorrerá na pena de reclusão de dois a quatro anos.
XIII – Quem impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social, incorrerá na pena de reclusão de dois a quatro anos.
XIV – Quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, incorrerá na pena de reclusão de um a três anos e multa.
XV – Quem fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo, incorrerá na pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.
Se qualquer dos crimes previstos nos últimos dois itens for cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a pena será de reclusão de dois a cinco anos e multa, e o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência, o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; e a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.
A injúria racial ocorre quando se usam palavras depreciativas referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou condição da pessoa idosa ou portadora de deficiência. A intenção é a de ofender a honra de uma pessoa, a sua dignidade. A pena de quem incorre nesse crime será de reclusão de um a três anos e multa.
Essa pena poderá ser aumentada em um terço, se qualquer dos crimes for cometido:
I – contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro;
II – contra funcionário público, em razão de suas funções, ou contra os presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal.
III – na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da injúria.
Se o crime for cometido mediante paga ou promessa de recompensa, aplica-se a pena em dobro, e se o crime for cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.
Homofobia, transfobia e seu enquadramento como crimes de racismo
Em junho de 2019, o plenário do Supremo Tribunal Federal enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo.
Vale transcrever essa parte da tese firmada pelo STF:
“O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.”
Infelizmente, ainda somos um país muito concentrador de riquezas e excludente para aqueles que nascem economicamente menos privilegiados ou que são tratados pela elite governante e econômica como seres inferiores. Para os amigos do rei é uma Pasárgada, para os demais, muitas vezes, nem a proteção da lei se aplica.
Que esse episódio, lamentável e muito ofensivo para todas as pessoas que sofrem discriminação, sirva para deixar claro que, apesar de tudo o que o Brasil já passou, algumas pessoas continuam as mesmas e pensando como seus ancestrais escravocratas. Que ações institucionais mais efetivas ocorram. Que os governos em todas as suas esferas permitam que os negros e demais vítimas do racismo assumam as posições mais importantes também. Gente qualificada não falta, somente lhes são negadas tais oportunidades.
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Foto da Capa: Agência Senado