Na crônica da semana passada falei um pouco sobre Gorizia, a cidade que pertence a dois países. Pois bem, foi ali, na parte eslovena desta cidade, que tive uma das experiências mais interessantes da viagem. Também já disse em outro texto que para mim uma viagem é setenta porcento pessoas e trinta porcento pontos turísticos. Gosto mesmo é de vivenciar o lugar através dos habitantes locais. Gosto da troca.
Aceitei um convite para jantar e saí deste encontro com uma história que talvez nunca conheceria de outra forma. Chegamos às sete como combinado. Família reunida. Às sextas feiras eles comem pizza nesta casa na Eslovênia. Um casal com filhos adolescentes. Naquela noite, nós ocupamos os dois outros lugares da mesa. A comida era italiana, mas o vinho regional. Apesar de ser considerada uma das menores regiões produtoras do mundo, a tradição de vinicultura na Eslovênia é mais antiga que a de países como França e Espanha.
Enquanto comíamos e bebíamos, conversamos sobre vários assuntos. Desde trivialidades, passando pela fauna brasileira, a localização no mapa das principais cidades, curiosidades sobre a imigração no Brasil, a razão de termos passaporte italiano, miscigenação, cultura, desigualdade social e, claro, política. Fiquei sensibilizada com o interesse que demonstravam.
A segunda rodada foi sobre a Eslovênia. Tivemos a oportunidade de perguntar muitas coisas também. Curiosidades comuns quando pessoas de diferentes partes do mundo se encontram. Falamos sobre momentos históricos, sobre guerras, pós-guerra, sobre liberdade, sobre reconstrução de uma sociedade e foi neste contexto que surgiu o tema que dá título à crônica de hoje: as amas de leite eslovenas. Mulheres que viveram e morreram longe de sua terra natal. Uma ferida ainda aberta nesta sociedade.
No final do século XIX e início do século XX, muitas mulheres, especialmente das áreas mais pobres da atual Eslovênia – que fazia parte do Império Austro-Húngaro -, emigraram para cidades como Alexandria, no Egito, para trabalhar como amas de leite. Para elas, amamentar os filhos de outras mulheres era a chance que tinham de enviar dinheiro e melhorar as condições de vida da família. Mães jovens que deixavam seus bebês recém-nascidos para trás e iam para o Egito trabalhar para a elite europeia que se mudou para o país.
Esta foi a realidade para cerca de seis mil mulheres da região de Goriska. As Aleksandrinke, como ficaram conhecidas.
O fato desta história nos ter sido contada com tanta emoção por uma mulher, na terra de onde milhares de outras mulheres partiram, e para onde nunca retornaram, me tocou profundamente. E é por isso que trago aqui o tema.
Embora a contribuição destas mulheres para as suas famílias e para a economia local tenha sido importante, elas foram discriminadas e estigmatizadas. Algumas conseguiram voltar, mas muitas ao retornar à Eslovênia foram hostilizadas e obrigadas a voltar para o Egito, onde ficaram até morrer.
Para a sociedade conservadora da época, essas mulheres haviam “cruzado a linha”. Se deixaram suas famílias e filhos e ofereceram o próprio peito, poderiam ter feito mais. Já não as queriam de volta. Criou-se uma geração de filhos órfãos de mães vivas. Não por vontade própria, mas por preconceito.
A nossa anfitriã, a que nos contou essa história durante o jantar, é professora, defensora dos direitos das mulheres e mãe de dois meninos. Ela nos disse que nos últimos anos, o governo esloveno, juntamente com associações históricas, tem demonstrado um maior interesse em preservar e honrar a memória dessas mulheres.
Duas referências de pesquisadoras que tem trabalhos publicados sobre o papel histórico das mulheres na Eslovênia:
1. Marta Verginella;
2. Ana Hofman
Foto da Capa: Reprodução de imagem do documentário Aleksandrinke, de Metod Pevec.
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