Também nutriam um amor secreto pelos covardes.
Sem eles, sua coragem seria um esforço banal e inútil.
Milan Kundera
Sou irremediavelmente distraída. Talvez seja um pouco tarde para revisar diagnósticos, mas creio que fui – e, em algum lugar, sou – uma criança que seria diagnosticada como TDAH.
Panela no fogo mais do que devia, a chave de casa como souvenir para o Uber, procurar o celular enquanto fala no celular, cigarro guardado na geladeira são apenas o cotidiano de pessoas como nós. Evidentemente, abundam leituras de atos falhos inconscientes, ainda que os mesmos atos formem vasta matéria para esse diagnóstico psiquiátrico.
Acontece que não gosto muito de diagnósticos quando xingamentos ou designações comuns são suficientes. Então, assim como por vezes podemos trocar psicopata por um palavrão qualquer, outras tantas podemos trocar TDAH por distraída. Longe de querer romantizar uma condição que pode ser bem difícil, mas somente para lembrar Leminski e dizer com o poeta “distraídos venceremos”.
O que faço com isso? O possível. Práticas corporais para estar mais telúrica, escrita e psicanálise. Por sorte, essa clínica de viés artístico que, graças aos deuses – ou às diabretes – funciona na base da atenção equiflutuante. Uma atenção que funciona bem ao não ser demasiado atenta. Em todo o caso, não há distração possível para o que vem passando no mundo.
É que perdemos algo mais pelo caminho. Espero que não seja tão importante quanto as chaves de casa. Nessas buscas, caminhar também é preciso. Quando caminhamos por nosso bairro de classe média, aqui em Santa Fe, percebemos como as casas estão se tornando bunkers, verdadeiros castelinhos, minicondomínios. Já não se tratam de grades que mostram parcialmente os tesouros burgueses, mas de paredões isolantes de qualquer contato exterior. Impressiona o rechaço à vivência comunitária, à negação da partilha mínima de uma janela ou varanda mais amável.
Decidi, com isso, que quero melhorar a varanda aqui de casa. Fofocar a partir dela, de vez em quando, gerar algo de contato. Sair da lógica do burguês que só quer ver a rua quando sai de casa em sua cápsula rodante, enquanto dentro de casa, roda suas telas infinitas.
Neste autoerotismo alienante, o laço com outres só pode ser desastroso, na base do tudo ou nada, quer dizer, binarismo e microfascismo. Um laço que não se solidariza com nada e ninguém, porque atado nele, o indivíduo só salva o outro se isto equivaler a salvar a própria pele. Assim é que Bolsonaro quer salvar os incautos do 8 de janeiro de 2023, apenas para salvar a si mesmo.
De nossa parte, distraída com um olho e atenta com um ouvido, insistiremos.
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Foto da Capa: Gerada por IA