Agnès Varda, a cineasta belga que foi uma das precursoras da nouvelle vague, fez um filme pra mim. Tudo bem, ela certamente nunca ouviu falar de mim. O filme, Cléo das 5 às 7, estreou em 1962. Eu nasci em 1963. Até por isso é impossível. Sem falar que ela nasceu em 1928. Em 63, tinha 35 anos, vivia na França. Ninguém da minha família disse conhecê-la. Como poderia ter feito um filme pra mim?
O fato é que fez. E eu, ingrato e alienado, só fui assistir neste ano, em 2023. Levei sessenta anos pra ver. E por que o filme é pra mim?
Bom, vamos voltar lá a minha infância, que é bem mais próxima do filme da Agnès. Sempre preferi desenhar e criar história em quadrinhos do que ler uma. Lia algumas sim, mas longe de me tornar um colecionador de gibis. Acho que lia o suficiente para me encorajar a criar as minhas.
Na adolescência, achava totalmente entediante filmes de perseguição de carros, de lutas, até vi os de tragédias, como Tubarão, Inferno na Torre. O filme que me pegou nessa época e vi várias vezes foi Tommy, a ópera rock. E não é apenas porque sempre fui ligado à música. Era pela estranheza. Coisas criativas são estranhas. Muito tempo depois fui ler os teóricos da literatura, os formalistas russos, que colocam o estranhamento como o centro do efeito causado pela seleção e combinação dos elementos das diversas linguagens artísticas.
Fui crescendo e admirando narrativas, sejam as literárias, as de teatro ou as do cinema, que fossem criativas na forma, na maneira de conduzir, me interessando muito menos pelo que é contado. Sempre mantive distância do escritor que é chamado de um grande contador de histórias. Normalmente se oculta por baixo desse elogio uma narrativa um tanto comum para leitores que estão acompanhando, no meu caso suportando, só para ver o que vai acontecer.
E, convenhamos, na vida de cada um, em noventa por cento do tempo, o que acontece? Nada de especial. Se um coitado passasse seu precioso tempo dedicando sua atenção pra ver o que iria acontecer em nossas vidas, sairia muito frustrado.
Mas, se ocorresse a ele se deter em como andamos, sentamos, olhamos para o lado, levamos um copo à boca, ficamos aflitos ou pensativos por algo que altera momentaneamente nosso semblante, depois voltamos do transe despertados pelo ruído de algo na rua. Se olhasse para isso sem se preocupar com o que significa, pois significa apenas que estamos vivos; se parasse de se perguntar no que vai dar, pois a resposta todos nós sabemos, veria que há muito por enquadrar no seu ângulo de câmera.
Assim é Cléo das 5 às 7. Vi no Mubi. Transita com delicadeza por instantes de vida observados pelos olhos de uma personagem. Significados? A cantora, Cléo, pode estar entre a vida e a morte. O filme é em preto e branco. O jogo das cores conduz tudo; transitamos entre a luz da vida e a escuridão da morte. O branco e preto alternam e convivem na própria roupa da cantora: no início com um vestido xadrez, no meio angelical de branco, no final de preto. Ela morre? Veja e descubra se a Agnès Varda não fez esse filme pra você também.