Os absurdos do cotidiano são tantos que, às vezes, paraliso entre o espanto e a indignação. Até articular uma frase parece impossível. Assim como escrever um texto com princípio, meio e fim, que diga algo coerente. Então, ligo a TV em busca de qualquer coisa que não acione minhas emoções já dilaceradas. Mas desisto e vou dar uma volta na quadra. Caminhar, respirar, perder os olhos nas árvores que ainda restam. Nesse andar, ouço dois homens comentando a dor de um pai que teve o filho assassinado pela polícia. Imediatamente, a lembrança do desespero de outro pai, que também perdeu o filho assassinado pela polícia em 2020, mexe com todo o meu ser – Humano, sem dúvida.
Volto para casa, começo a revirar escritos de dois anos atrás e encontro um texto que escrevi na época e diz muito do que vivemos hoje e do que sinto.
Reflexão sobre um pai que diante do filho assassinado
disse que o menino lutava para ser “alguém”
Definitivamente perdemos o pouco que nos resta de delicadeza. Esse pai, com lágrimas correndo pelo rosto sofrido, diz: “Ele lutava para ser alguém na vida”. Tomei um susto e as emoções começaram a reverberar. A dureza desta frase banal, assimilada pelos mais humildes que lutam por vida e trabalho dignos, soou discriminatória e indigesta para os meus ouvidos, hoje mais sensíveis do que nunca. Foi como ter recebido um sonoro tapa na cara. Dói muito!
Quer dizer, então, que precisamos lutar para ser alguém? Este não é um processo natural, que se dá a partir do nascimento? Aquela criança que sai indefesa do útero da mãe, onde por nove meses foi alimentada e acalentada do jeito possível, é o que mesmo quando nasce? Não é alguém? Ou alguns nascem “alguém” e outros não? Quem determina? Qual a origem de uma afirmação como esta?
Nossas raízes colonialistas e escravagistas, aninhadas na casa grande, desenharam esta sociedade barbaramente seletiva. A sociedade do toma lá, dá cá, da troca de favores, “me faz isso, que eu te dou aquilo”, do apadrinhamento corrupto e predatório que aí está. Criaram e insuflaram várias gerações de “alguém” que, enriquecidas e soberbas, foram atrás de quem as servisse. Não apenas para servir, mas para escravizar, humilhar. Buscaram os negros africanos e o desprezo por eles foi tão grande que atravessou séculos e se transformou num dos mais arraigados e indecentes preconceitos no Brasil. Desprezo que foi se estendendo para tantos outros trabalhadores que passaram a servir os donos da casa, a “grande”.
Aqueles que fazem os serviços essenciais de tantos lares, mas não são dignos de sentar à mesa pela cor da pele ou pela condição social.
São os “serviçais” – a empregada doméstica, a cozinheira, o porteiro, o zelador, o jardineiro, o vigia, a cuidadora, a babá, enfim. São os seres inferiores que entram pela porta dos fundos dos edifícios e usam o elevador de serviço. É! Os elevadores de serviço que, além de carregar móveis, compras, entre outros apetrechos, servem também para carregar pessoas que não podem ou não devem usar o elevador social. E não falo isso aleatoriamente. Posicionada para pegar o elevador social, já fui encaminhada para o elevador de serviço em um prédio residencial onde teria uma reunião de trabalho.
Não entendo este tipo de recomendação. Até porque são essas pessoas, “os serviçais”, que cuidam das residências, dos filhos de quem as contrata, dos mais velhos ou doentes, preparam as refeições, limpam tudo, mesmo não sendo “alguém”. E seguem na labuta cotidiana para SER.
Que sociedade é esta, ainda dividida em castas e alicerçada por podres poderes? Que sociedade é esta que estimula o “quem dá mais” e ignora políticas públicas necessárias e urgentes para que todos sejam cidadãos e possam exercer com dignidade seus direitos e deveres?
Garantir educação, saúde, segurança e acessibilidade são obrigações do Estado. Mas onde está o Estado? Onde está a Nação? Onde está a Constituição que nos garante o direito à vida, à acessibilidade, à participação, à liberdade de opinião? Direito à democracia, palavra que está perdendo o sentido. Não podemos jamais ter orgulho da ignorância, da barbárie, do descaso e da falta de empatia, marcas profundas deste triste Brasil.
Todos somos ALGUÉM!