Passados mais de vinte anos desde sua concepção em 1998, Crimes Do Futuro (2022) não é apenas uma espécie de meditação peculiar sobre a estética – disciplina filosófica interessada pela sensibilidade humana e pelas condições de possibilidade da experiência, seja diante da arte ou de qualquer outra coisa. Meditação cujo ponto de partida seria, justamente, o corpo, seus distintos modos de acoplamento com o mundo, suas ampliações tecnológicas por meio das quais realiza tarefas e sua organização estruturada, sempre fluída e permeável às modificações ambientais e culturais. Embora o tema do corpo, da experiência e da arte apareçam ali como relevantes – amarrando-se no singular mise-en-scène cronenberguiano de derrelição, colapso e permanência irônica de uma burocracia de Estado que procura controlar as mutações e adaptações corporais num futuro que apenas presumimos – o filme também é uma espécie contemporânea de noir no qual a trama conflitiva por trás de um assassinato, apresentado já nos primeiros minutos, é aos poucos revelada a partir das ações das personagens.
Nesse sentido, muito antes de se apresentar como um prognóstico contundente sobre o futuro que especulamos para o planeta e, obviamente, para o destino de nossa vida nele, somando-se aos famigerados filmes apocalípticos ou aqueles que partem de suposições escatológicas, Crimes do Futuro (2022) conta a história de um tipo de crime – o filicídio – capaz de mobilizar profundamente o nosso imaginário e, portanto, aquelas expectativas e estereótipos afáveis que comumente associamos às relações intersubjetivas, especialmente as familiares. Pois a fantasia que Cronenberg nos convida a apreciar inicia com uma mãe matando seu próprio filho.
Ainda que a trama cronenberguiana se desenvolva sobre o pano de fundo de uma distensão temporal – alguns dirão aceleracionista e distópica – em que as experiências, relações, pensamentos e ações resguardem uma remota proximidade com aquilo que hoje representam em nossa forma de vida humana, esse novo mundo diante do qual o enredo se desenvolve não se apresenta como mera previsão do nosso futuro. Antes de se delinear a partir de pretensões científicas bem-informadas pelo que hoje sabemos de modo seguro sobre as mudanças climáticas e sobre o rastro deixado pela nossa existência planetária a partir do antropoceno, o cenário do filme é uma extrapolação imaginativa onde a liberdade ficcional de Cronenberg inventa, ao seu modo conhecido, as situações e enquadramentos nos quais os conflitos são insidiosamente urdidos através da ação de suas inquietantes personagens. Em fotografia caravaggiana e em meio aos destroços de um resto nostálgico deixados pelas antigas formas de convivência e sociabilidade é que o filicídio inicial reintroduz a dimensão conceitual do título – um crime perpetrado contra o futuro –; dando sequência repercussiva para as ações e produzindo uma complicação, precisamente, ao nível da natividade. Pois Djuna, a mãe que mata seu filho, perfaz um movimento de total recusa à concepção do novo no mundo e, assim, desvia do modo politicamente otimista pelo qual Arendt pensou o conceito de natividade em A condição humana (1958).
Ao iniciar, fazendo um possível intertexto com a tradição artística, com a introdução das personagens liminares Djuna e seu filho, Cronenberg mostra desde aí a densidade de uma relação que se expressa pela hiper vigilância e por certo desgosto. O filho, que brinca como qualquer outra criança na beira do mar, mais tarde devora, escondido, uma lixeira de plástico, evidenciando assim a singularidade perturbadora daquilo que, para sua mãe, é claramente um desvio, ou uma mudança essencial no seu modo de ser, alimentar-se, portar-se. Eis aí, portanto, um dos pontos de partida de Cronenberg. Djuna e seu filho vivem nesse futuro indeterminado em que o mundo, inundado por plástico e afetado por modificações climáticas nas cadeias produtivas e alimentares, exige uma adaptação humana. Essa situação nova, diretamente causada pela nossa habitação no planeta e pelo nosso abuso de seus recursos naturais, demanda de nós adaptabilidade, ou seja, mudança. Comer plástico e ter, portanto, uma anatomia compatível com esse recurso agora abundante condiz precisamente a essa mutação em nosso corpo. Coisa que, para Djuna, é intolerável, pois a considera não-humana. É a constatação desconcertante dessa diferença capaz de contrariar, por um lado, as expectativas maternas e, por outro, as expectativas conceituais sobre a ‘humanidade’, o que leva Djuna a assassinar o próprio filho.
A cena inicial, num movimento de antecipação, não opera apenas um tipo de aviso aos espectadores (fiquem ou saiam da sala, mas esse filme será sobre isto e, talvez, sobre coisas ainda mais perturbadoras ao nível do gore), mas também inaugura nele, parece-me, aquele conflito central cuja resolução será adiada por Cronenberg até o final, honrando assim a aura do suspense que captura a atenção do espectador diante da instauração de uma incógnita ou de um impasse. Ainda que foquemos nossa atenção nas demais personagens ao longo da história, bem como em seus pensamentos, emoções e diálogos, o assassinato do começo está subliminarmente presente, feito um mistério tecido no subtexto. Será a partir desse filicídio, portanto, que a ação das personagens se organiza, modulando-se e ganhando, no arco narrativo, sua razoabilidade a partir do colorido subjetivo do caráter ou da inclinação de cada uma delas. Cronenberg, por exemplo, recobre o assassinato – premeditado e fruto de uma ruminação ao nível intelectual e afetivo – de profunda ambivalência na medida em que ele é conduzido por um gesto ambíguo através do qual Djuna, carregando um travesseiro, em vez de confortar e alentar o sono de seu filho, sufoca-o e devasta qualquer promessa de futuro. Com isso, nossas edulcoradas expectativas sobre a maternidade são de chofre subvertidas, viradas do avesso, embora aí também ecoem certas reminiscências ao nível cultural, já que Djuna performa por meio do ato uma reencenação contemporânea daquela violência patética – prenhe de paixão, sentimento, phatós – da famigerada Medeia de Eurípedes.
Saberemos mais tarde, contudo, que diferentemente da personagem trágica, Djuna não age apenas motivada pelo seu drama pessoal e subjetivo, onde o tormento psicológico e as ações que dele decorrem fundamentam o todo da narrativa como acontece na tragédia grega. Mas Djuna, essa personagem misteriosa, filicida, e que na verdade muito pouco aparece no filme de Cronenberg, tornar-se-á, pelo menos no sentido da sua motivação, cada vez mais parecida com outra heroína trágica ao longo da evolução do enredo, quando somos finalmente confrontados com algo que nos explica a razão de sua ação. Na medida em que o filicídio por ela perpetrado nos é apresentado como fruto do desejo pela preservação nostálgica de um conjunto de valores espirituais e desenvolvidos no bojo de uma sociedade que não existe mais, Djuna passará a se parecer mais com Antígona. Pois é o brilho desgastado desse conjunto de referenciais antigos o que justifica, na errância intelectual e afetiva de Djuna, o assassinato de seu filho como um ato necessário, ou honroso; é, parece-me, precisamente esse elemento que fornece aquele fundo intencional capaz de lastrear o pensamento e as ações da personagem cronenberguiana.
Só mais tarde, conforme o enredo se enovela, é que descobriremos que a brutalidade ambivalente do filicídio que cometeu estava, para ela, plenamente justificada por um ratio melancólico, ainda vinculado ao passado em que os humanos não comiam plástico, tinham um corpo e uma anatomia supostamente ideais e jamais se adaptavam – ainda que diante de um colapso essencialista frente ao motivo distópico. A ideia, por exemplo, de que o corpo é, na verdade, um organismo vivo em total relação ambiental e, também, cultural, podendo modificar-se a partir dessas instâncias, não é nem de perto cogitada por Djuna. Vejo, portanto, no filicídio cometido por ela a justificação normativa que, saudosamente, busca a manutenção de um ideal absoluto e de uma preconcepção sobre o que a humanidade deve ser e sobre o ponto em que, diante desse futuro inventado, ela deixará de ser o que fora para tornar-se outra coisa. A imutabilidade é, para a filicida de Cronenberg, aquela regra obsessiva pela qual apreende o mundo e pretende legislar sobre ele.
Nesse sentido, é curioso notar como a ação de Djuna é motivada por um entrecruzamento singular de elementos filosóficos, afetivos e políticos que, novamente, embora em outro diapasão, aproximam-se da personagem euripediana. Como Medeia, Djuna não age por leviandade ciumenta (interpretação que, aliás, o filme bloqueia, não dando a ela nenhum indício e, portanto, desautorizando-a). Ela mata porque, na singularidade de sua especulação subjetiva, encontra-se diante de certa vacuidade deixada pela queda de um ideal em meio à realidade distópica e, consequentemente, pela ausência de um comprometimento forte de Lang (o pai de seu filho) para com aqueles valores antigos que ainda lhe são essenciais. Como Medeia, Djuna é desterrada em dois sentidos: no literal, está numa terra (mundo) estrangeira e, no simbólico, num mundo alheio aos seus princípios convencionais. Assim, ela não aceita e não acolhe essa prole que, sobre ela, perfaz uma espécie de dupla violência, natural e cultural, literal e simbólica. E, como Medeia, Djuna atravessa a narrativa de Cronenberg ao largo de qualquer retaliação ou ‘justiça’ (haverá ainda ‘justiça’ nessa distopia?), embora pese sobre ela o assassinato. Algo muito diferente se passará, conforme veremos, com Lang, pois enquanto Djuna é uma espécie de arquétipo conservacionista, Lang aparece como o representante de um aceleracionismo insurgente por meio de um anacronismo formal com os conhecidos exemplos de subversão política e subterfúgio revolucionário, organizando resistências que tentam, na clandestinidade, colocar em xeque o controle Estatal. Aliás, é Lang que chora, numa cena tocante, ao ver e repousar a mão sobre o filho morto – ação que, talvez, seja uma das únicas do filme que resguarde uma proximidade íntima e, por isso, perturbadora com nossos próprios sentimentos e afetos. Pois para Lang, a morte do filho representa, de fato, o assassinato de um futuro. É só bem mais tarde no filme que constataremos em que medida essa utopia adaptativa que motiva Lang a pensar, sofrer e sentir será também brutalmente dizimada.
Ao redor do crime inicial é que a trama passa a constelar toda uma referencialidade oblíqua ao longo do filme, seja com a presença do corpo do morto, sua conservação, exumação e autópsia; seja nos rompantes de tristeza de seu pai e nos discursos sugestivos sobre humanos ‘novos’ cujo corpo já estaria adaptado ao consumo de plástico. Na medida em que preconizamos esse acontecimento paradigmático do início como um gatilho inicial na trama das ações e movimentos, então também o ordenamento entre protagonistas e coadjuvantes parece se modificar no noir futurista de Cronenberg. Ainda que personagens apareçam liminarmente, elas passam, considerada a trama, a ganhar um fundamental destaque; como, por exemplo, o Detetive Cope e a dupla Router e Berst. Enquanto o primeiro mantém o ar de mistério típico de um noir, deixando explícito para os espectadores que sabe de algo que nós ainda não sabemos; as últimas desempenharão um papel igualmente central pois, embora suas ações estejam insidiosamente escondidas sobre a ingenuidade de um dissimulado interesse pela tecnologia e pela arte, elas estão perfeitamente alinhadas com a conservação daquilo que Djuna defende ao justificar seu filicídio, desempenhando um papel igualmente patético na derrelição utópica de Lang. Wippet e Timlin, os burocratas que precisam registrar e controlar as modificações corporais que no futuro distópico de Cronenberg se transformaram na mais elevada forma de arte capaz de efusivos élans estéticos, atuam de modo sempre ambivalente. Ora evidenciam um fascínio erótico pelos artistas Saul e Caprice, ora se abrigam na conhecida veleidade presunçosa de quem desempenha uma função de Estado sem ter, de fato, o poder. Movem-se, de modo geral, insidiosamente e falam quase por sussurros, como se certas coisas precisassem permanecer num silêncio representado pela vigilância e pela burocracia.
É particularmente interessante como Cronenberg inverte, em outra revisitação da tradição cultural e artística, o conhecido Pigmalião de Ovídio com a dupla Saul e Caprice. Embora a questão sobre qual dos dois possuí protagonismo artístico seja, a todo momento, problematizada no filme, é usualmente o corpo de Saul que está submetido à intervenção artística. Nesse futuro cronenberguiano, a arte não mais metaforiza ou representa o corpo, mas atua sobre ele de modo literal e real, extrapolando em muito o que hoje conhecemos como body art ou body modification. Novamente, a pauta da modificação, da transformação e da mutação aparece. O corpo humano não sente mais dor e a cirurgia, já longe de seu puro enquadramento medical, torna-se a principal fonte de prazer – “o sexo antigo” e o “novo sexo” – e, evidente, é sua fundamentação hedonista que abre o caminho para o engaste estético e, consequentemente, artístico. Assim, entregar-se docilmente à cirurgia significa, literalmente, experimentar conscientemente a ação do outro sobre meu próprio corpo, seus efeitos e implicações. A questão sobre o par masoquismo/sadismo e sua expressão social e sexual desloca-se, no filme, para além da constatação de um desvio ou de uma anormalidade, demandando do espectador um reconhecimento sobre, talvez, a sua superação numa sociedade em que a dor – a que evitamos narcisicamente e a dor do outro – deixou de ser um parâmetro para a sociabilidade. Também é curioso que Cronenberg tenha batizado Caprice, a antiga traumatologista que se transforma em artista e performer, com uma palavra importante capaz de retomar tradições estéticas e artísticas setentistas. Caprice é a tradução anglófona de ‘capriccio’ que, no italiano, denota uma rápida e brusca mudança de ânimo ou de espírito marcada por um arrepio que eriça os pêlos e cabelos, ou um certo “horror” sentido diante dessa transformação rápida de um estado subjetivo a outro, ou seja: um começo súbito. Mas também denota, por outro lado, coisas artísticas como, por exemplo, uma música rápida e livre sem muitas regras ou estruturas, mas extremamente vivaz, ou uma pintura que mescla elementos realistas e fantasiosos.
E Saul, esse alter ego cronenberguiano conforme afirmou o próprio diretor em entrevista, é, dada a inversão da conhecida mitologia, o arquétipo de uma vulnerabilidade artística na qual o artista dá tudo – até mesmo o seu corpo – pela arte e, assim, submete-se ao crivo de sua audiência. Só ao fim do filme, no close up magistral em preto e branco que nos remete ao êxtase beatífico da Santa Teresa D’Ávila de Bernini, é que o desajuste de Saul que pontua todo o enredo parece ser resolvido e podemos, então, entender as proximidades, ou os paralelismos, entre ele e o menino assassinado. Malgrado Saul padeça diariamente no corpo um desajuste cuja origem não compreendemos – porque Saul também não a compreende… – é justamente esse padecimento que parece caminhar pari passu aos seus extravasamentos artísticos, permeando as ações da dupla. É a constante artificação da cirurgia, no caso de Saul, que corresponde à fonte do tormento, invertendo assim a compreensão apregoada, sobretudo pelo freudismo, de que a arte é um modo de elaboração da dor. Nesse sentido, o êxtase do final do filme é para Saul uma espécie de resolução interna desse desajuste e uma aceitação de sua nova condição.
Se, por um lado, temos ao final certa resolução daquele suspense iniciado com o filicídio, então, por outro lado, temos a inscrição de um novo: sanado o desajuste, realizado o êxtase e reconhecida a sua nova condição, para onde caminhará a arte de Saul e Caprice agora? Essa suspensão que instaura uma nova anátema ao final do filme parece retomar acontecimentos anteriores em que a dupla, em certo momento, passa a perseguir projetos em separado, indiciando separações efetivas ou apenas criativas – quando, por exemplo, Saul realiza procedimentos sem a ajuda de Caprice; ou quando Caprice visita outros performers, submetendo-se ela mesma às modificações corporais com a ajuda deles.
Diante do novo filme de Cronenberg, resta, para além da constatação de seus temas, cenários, panos de fundo e possíveis questões filosóficas, o reconhecimento de uma história sendo contada, na qual a fantasia se mescla com elementos muitos próximos de nós, convocando-nos ao secular exercício da atenção, dos reconhecimentos e da educação da nossa sensibilidade – e, portanto, de nossas capacidades corporais e afetivas – que a arte sempre convida.
Para encerrar, faço, como se diz no teatro e no cinema, um aparté. As críticas atuais sobre o novo filme de Cronenberg não menosprezam por completo as ações e, consequentemente, o conjunto delas na construção da trama por trás da história. No entanto, parecem atentar – e, na minha opinião, em demasia – para os elementos do mise-en-scène e para os diversos núcleos temáticos que daí se desdobram, ou seja, distopia, mutação, corporalidade, estética, arte, performance, etc.. Se insisti, aqui, na cena inicial do filicídio é porque ela, para mim, adquire uma fundamental importância ao considerarmos o enredo, já que dentro dele o crime opera como o pontapé da trama. Confesso, nesse sentido, que minha insistência se inspira sobretudo na contundência de Aristóteles que, em sua Poética, entende a ação como o elemento fundamental do drama e o enredo como sendo, portanto, uma de suas mais importantes condições (Aristóteles, Poética, 1448a, 1419a, 1450a e 1450a15).