O regime de bens em casamento ou união estável nada mais é do que a definição legal sobre a disposição da propriedade do casal
Sobre o regime de bens previsto no direito brasileiro, já escrevi detalhadamente em um artigo da Sler, publicado em maio de 2023, mas vale lembrar que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver, sendo que, de acordo com o Código Civil, o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento e é admissível a alteração do regime de bens mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
Vale dizer, o próprio Código Civil estabeleceu a possibilidade de judicialmente se alterar o regime de bens.
A este passo, cumpre informar que, se aprovado o projeto do novo Código Civil, como está, será possível inclusive a possibilidade da alteração do regime de bens pela via extrajudicial, e que há quem entenda que seria possível essa alteração extrajudicial desde já. Embora eu seja a favor de que a lei venha a instituir o procedimento extrajudicial para a alteração do regime de bens, fico contente que o judiciário brasileiro não tenha a seu juízo criado por meio de jurisprudência esse instituto e que isso se tornasse uma regra, um fato consumado. Acredito que a democracia só sobrevive quando há a independência dos três poderes, de acordo com a divisão tripartite de Montesquieu, que cabe ao legislativo criar leis e que, se algo não está previsto em lei, e poderia estar, foi porque o legislador achou melhor que não estivesse, que não cabe ao judiciário criar “regras” ou “decisões” que passem a valer para a solução de problemas ou de assuntos que não sejam urgentes e que não firam os direitos constitucionais.
Sempre importante lembrar que o regime de bens nos casamentos celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002, e o por ele estabelecido, na maioria dos casos era o regime da comunhão universal de bens. Atualmente, não havendo convenção a respeito do regime de bens, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.
Mas atualmente, para que seja alterado o regime de bens do casamento ou da união estável, é muito importante que seja observado o disposto no Código de Processo Civil, para esse tipo de processo judicial. Assim, a alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros. Essa ressalva busca evitar que casais, visando fraudar seus credores, busquem a alteração do regime de bens para salvar seus bens de eventuais execuções por dívidas.
Desse modo, com o mesmo fim de resguardar terceiros que possam ser credores do casal cuja alteração do regime de bens do casamento ou da união estável se requer, o juiz, ao receber a petição inicial, determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida alteração de bens, somente podendo decidir depois de decorrido o prazo de 30 (trinta) dias da publicação do edital.
A lei permite que os cônjuges ou integrantes da união estável, na petição inicial ou em petição avulsa, possam propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros.
Após o trânsito em julgado da sentença, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis e, caso qualquer dos cônjuges seja empresário, ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.
Um aspecto que gera muita discussão judicial é sobre os efeitos da alteração do regime de bens. Pode ela ter efeitos retroativos? De acordo com a Quarta Turma, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Raul Araújo, julgado por unanimidade em 25/04/2023, conforme publicado no Informativo do STJ n.º 772, em 02 de maio de 2023, que:
“Os efeitos da modificação do regime de separação total para o de comunhão universal de bens, na constância do casamento, retroagem à data do matrimônio (eficácia ex tunc).”
Vale transcrever os seguintes trechos das Informações do Inteiro Teor desse julgamento:
“Nesse caso, a retroatividade (efeitos ex tunc) não teria o condão de gerar prejuízos a terceiros, porque todo o patrimônio titulado pelos recorrentes continuaria respondendo, em sua integralidade, por eventuais dívidas, conforme inteligência do art. 1.667 do Código Civil de 2002, que dispõe que o regime da comunhão universal de bens importa a comunhão de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas. Com efeito, na hipótese de alteração do regime de bens para o da comunhão universal, o próprio casamento se fortalece, os vínculos do casal se ampliam e a eficácia ex tunc decorre da própria natureza do referido regime.
Nessa linha, é possível que os interessados requeiram ao juiz que estabeleça a retroação dos efeitos da sentença, optando pelos efeitos ex tunc. No que tange à esfera jurídica de interesses de terceiros, a lei já ressalva os direitos de terceiros que eventualmente se considerem prejudicados, de modo que a modificação do regime de bens será considerada ineficaz em relação a eles.
A vedação, em caráter absoluto, à retroatividade implicaria inadmissível engessamento, retardando os benefícios que adviriam de um regime presumivelmente mais vantajoso para as partes e terceiros. O que não se pode fazer é retroagir para prejudicar, para alterar uma situação do passado em prejuízo da sociedade. Ao contrário, se a retroatividade é benéfica para a coletividade, se não viola o patrimônio individual, nem prejudica terceiros, ou seja, se o retroagir não produz desequilíbrio jurídico-social, deve ser admitido.
Havendo alteração da separação eletiva de bens para a comunhão universal, só haveria de fato uma comunhão “universal” se os bens já existentes se comunicarem. Sendo o regime primitivo o da separação de bens, com a alteração para comunhão universal, todos os bens presentes e futuros devem entrar para a comunhão. Como a própria lei já ressalva os direitos de terceiros (a alteração do regime de bens será ineficaz perante eles), não há por que o Estado-juiz criar embaraços à livre decisão do casal acerca do que melhor atende a seus interesses.
É difícil também imaginar algum prejuízo aos credores, visto que esses, com a alteração do regime para comunhão universal, terão mais bens disponíveis para garantir a cobrança de valores. Independentemente de constar na decisão judicial, o patrimônio continuará respondendo pelas dívidas existentes. Quanto ao eventual credor prejudicado, vale a ressalva feita pela lei que diz respeito à ineficácia em relação a direito de algum terceiro que venha a alegar prejuízo.
Como regra, a mudança de regime de bens valerá apenas para o futuro, não prejudicando os atos jurídicos perfeitos. Mas a modificação poderá alcançar os atos passados se o regime adotado (exemplo: alteração de separação convencional para comunhão parcial ou universal) beneficiar terceiro credor pela ampliação das garantias patrimoniais. Aceitável, portanto, a retroação decorrente de explícita manifestação de vontade dos cônjuges.
A mutabilidade do regime de bens nada mais é do que a livre disposição patrimonial dos cônjuges, senhores que são de suas coisas. Não há sentido em proibir a retroatividade à data da celebração do matrimônio livremente manifestada pelos cônjuges de comunicar todo o patrimônio, inclusive aquele amealhado antes de formulado o pedido de alteração do regime de bens, especialmente no caso em que a retroatividade é corolário lógico da mudança para a comunhão universal.”
Nesse mesmo informativo também constam outros dois importantes julgamentos referentes à modificação do regime de bens do casamento.
Veja-se que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos autos do REsp. 1.947.749-SP, de Relatoria da Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 14/09/2021, “A cessação da incapacidade civil de um dos cônjuges, que impunha a adoção do regime da separação obrigatória de bens sob a égide do Código Civil de 1916, autoriza a modificação do regime de bens do casamento.”, e que nos autos do REsp 1.904.498-S-SP, também de relatoria da Min. Nancy Andrighi , decidiu que “A apresentação da relação pormenorizada do acervo patrimonial do casal não é requisito essencial para deferimento do pedido de alteração do regime de bens.”
Com relação à alteração do regime para maiores de 70 anos, vale transcrever o entendimento de Rodrigo da Cunha Pereira, no seu livro Direito das Famílias, 41ª Edição, da Editora Forense, ps. 155 e 156, de que “Não se pode aplicar analogicamente aos maiores de setenta anos, a proibição de alteração de regime de bens. Primeiro, porque a regra de proibição é tão somente para adoção do regime de bens. Segundo, porque contraria o princípio da intervenção do Estado, e também a regra no artigo 1.531 do CCB – 2002 que proíbe tal interferência.”
Ademais, o Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2024, decidiu por unanimidade, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que a “Separação de bens em casamento de pessoas acima de 70 anos não é obrigatória”. Portanto, superada mais essa questão jurídica.
Espero que esse assunto lhes tenha sido interessante ou quem sabe até mesmo útil.
Todos os textos de Marcelo Terra Camargo estão AQUI.
Foto da Capa: Freepik