Tenho sido muito crítico, aqui, à forma como nossa cidade vem se transformando urbanisticamente. Empreendimentos cada vez maiores e mais altos são construídos em zonas tradicionais com outras características morfológicas já consolidadas. Não é preconceito contra o novo, de maneira nenhuma. É uma questão de adequação ao lugar. Quando a Rossi construiu novos bairros em zonas sem caracterização definida, como no prolongamento da Av. Ipiranga ou na Av. Antônio de Carvalho, não me incomodou. Não gosto do fato de serem condomínios fechados, mas tem gente que gosta. Percebo isso ao transitar pela Estrada do Mar, quando penso: – quem gosta de viver dentro desses mundos de faz-de-conta? E acabo me lembrando do filme O Show de Truman. A comparação é inevitável. Um mundo particularizado que é sentido e entendido como a própria realidade. É o gosto deles, não tenho nada com isso.
Paris, depois de ter permitido alguns edifícios de maior altura dentro dos limites históricos, se deu conta do erro e resolveu dedicar um bairro novo, La Défense, para esse fim. E o fez com grandiosidade e qualidade prolongando a avenida que parte do centro da cidade em direção ao norte: o grande eixo de Paris, na concepção do presidente Miterrand. De fato, um eixo que parte do museu do Louvre, passa pela avenida Champs-Elysées, Arco do Triunfo e termina no Grande Arco de La Défense não tem como não ser majestoso e grandioso. Já em Porto Alegre, sinto uma dificuldade muito grande em comentar a inadequação de alguns projetos. Logo sou taxado como avesso ao progresso, à economia, à livre iniciativa e tantos outros epítetos que não têm nada a ver com o assunto: contexto urbano, qualidade da arquitetura.
Então, hoje, eu queria ser positivo, falar de intervenções urbanas que vão ao encontro de meus valores urbanísticos. Vejo, pingando por toda cidade, iniciativas urbanísticas e arquitetônicas de grande valor. Algumas regiões de Porto Alegre estão se tornando mais interessantes para mim e os que pensam da mesma forma que eu. Sim, formamos uma bolha que não é pequena. Apreciamos ver surgir vitalidade urbana, social e econômica consequente. Elas estão por toda parte, ressignificando antigas construções ou sendo construídas desde o chão, novas portanto. Pequenos mercados, restaurantes, cafés, lojas e serviços em geral permitem que seus moradores supram suas vontades e necessidades com uma simples caminhada. Para quem tem a sorte de viver nesses bairros, já não é preciso pegar o carro e ir ao shopping para tomar um café ou comprar um par de meias, é só caminhar um ou dois quarteirões. Também vejo com satisfação que grupos de médios e pequenos empresários encontram espaço para desenvolverem seus empreendimentos e negócios. Nos anos 80, publiquei um artigo que ressaltava as qualidades do Plano Diretor de então, que fomentava construtoras de pequeno porte. Mas isso é passado, o Plano Diretor de 1999 o sepultou. Por isso, é animador ver o renascimento dos edifícios de baixa altura e de atividades de rua que os shoppings e grandes redes de supermercado haviam matado. Vejo esse fenômeno com a mesma admiração que observo como antigas plantas brotam espontaneamente no mesmo lugar de onde foram arrancadas. A cidade, como a natureza, teima em viver. A ousadia e sabedoria em fazer cidades para as pessoas, felizmente, está viva (ver coluna anterior Ideologia Faz Cidades).
Não poderia apontar as tantas novas intervenções de qualidade que vejo acontecendo pela cidade. Não me canso de ser surpreendido por pequenos prédios construídos com uma nova lógica, de ver novos mercadinhos, restaurantes, e cafés sem estacionamento na frente. Vou me ater, no caso dos novos empreendimentos, ao exemplo da beleza que se transformou a Praça André Forster junto à Av. Nilópolis. Uma feirinha de produtos orgânicos, aos poucos, criou um sentido de lugar àquela praça. Foi crescendo e junto com ela outras atividades lúdicas se associaram. Depois uma feliz construção de um prédio de seis pavimentos com terraços e comércio no térreo – mercado e café, academia de ginástica – deu o tom que faltava ao ambiente. Uma pioneira padaria-restaurante ganhou mais uma companhia. Hoje já são diversos cafés e bares se espalhando também pela Rua Passo da Pátria. Aos poucos está se formando uma unidade de vizinhança, uma ambiência urbana propícia à caminhada, muito ao gosto da proposta da cidade de 15 minutos de Carlos Moreno para Paris. Claro, também está ali por perto a desgraça que são as farmácias e outras lojas pré-fabricadas de Porto Alegre, mas vou deixar esse assunto para outro dia.
Por que defendo os prédios de baixa altura? Porque eles são mais ecológicos, gastam menos energia na sua construção e manutenção. Porque criam uma relação amigável com as ruas e praças. Não fazem muita sombra e criam uma relação de vizinhança saudável. Mesmo que você não vá conversar com o morador do último pavimento, você sente que isso é possível. Fica uma sensação de acolhimento, pertencimento, de comunidade. E é isso que procuramos na cidade, sentir que não estamos sozinhos. Os grandes edifícios, que eliminaram sacadas, acabaram com essa relação interpessoal. As fachadas não são humanizadas. Nenhum vaso à vista, muito menos uma bicicleta, uma mesa ou uma cadeira indicando que ali mora alguém com particularidades diferentes do vizinho ao lado ou de cima ou de baixo. O que seria da literatura se não tivéssemos a curiosidade sobre o outro. Conhecer o outro nos dá a medida de nós mesmos. Caminhar pela cidade, com compromisso ou não, é flanar pela vida alheia. Isso dá prazer e traz sabedoria. Muitos turistas brasileiros gastam pernas maravilhados com as cidades europeias ou aqui perto em Buenos Aires, com seus infinitos terraços protegidos por toldos e cheios de objetos pessoais, para ver, em última análise, como se vive nessas cidades.
Mas também bairros antigos, como a Cidade Baixa, Bom Fim, Floresta e São Geraldo vêm se transformando. Um processo similar ao que aconteceu com a Vila Madalena em São Paulo, com o Soho em Nova Yorque e o Palermo Soho em Buenos Aires, para citar os mais famosos. E por que acontece esse movimento? Justamente porque há um público ávido por ambiências urbanas de outra ordem e porque, depreciados, com aluguéis baratos e grande oferta de imóveis vazios, facilitam a migração. É impressionante a quantidade de restaurantes, bares, galerias e ateliês que rumaram para esses bairros. Aos poucos essa oferta de serviços vai atraindo também novos moradores que vão se misturando aos atuais, aumentando a densidade do bairro. O ideal é que pequenos empreendedores reformassem e construíssem novas edificações dentro do padrão consolidado, reforçando a ambiência urbana que atraiu as novas atividades e moradores. É preciso ter o cuidado de não valorizar o bairro ao gosto de outro público; só assim se dificulta o processo de gentrificação, ou, dito de outra forma, de expulsão da população anterior.
Tinha prometido para eu mesmo ser positivo nessa coluna, mas não é possível esconder o risco de que os pioneiros agreguem valor à região e o grande capital seja atraído pela oportunidade de ganhar muito dinheiro com o valor dos terrenos que estão depreciados. Por isso, é importante a prefeitura impedir o aumento de índices construtivos que atraiam investidores que miram consumidores de outro poder aquisitivo. Administrar esse processo não é simples. O perigo das características originais do bairro irem para o ralo é muito grande. De qualquer forma, vou terminar a coluna aplaudindo as saudáveis iniciativas de indivíduos e grupos que tem tomado a inciativa de fazer uma cidade diferente, mais urbana e humana.