Somos tão acostumados com nosso modo de viver nas cidades atuais que tendemos a achar que elas sempre foram do jeito que são hoje. Mas, obviamente, isso não é verdade. Há cem anos houve uma grande revolução na maneira de construir e reconstruir as cidades. Depois de milênios sendo construída como uma grande massa uniforme de prédios justapostos, introduzimos a novidade das casas e edifícios separados uns dos outros, das ruas subdivididas para usos específicos e da especialização funcional de bairros. Há uma história por trás desse processo e conhecê-la é importante para entendermos as possibilidades que, tudo indica, estão se abrindo para o futuro. Sim, as cidades vão – precisam – se transformar radicalmente uma segunda vez. Como a inércia brasileira para mudanças é muito grande, resolvi trazer esse assunto à tona.
Prédios isolados como se fossem monumentos dentro das cidades, com quatro fachadas expostas, são muito raros de se encontrar na história. Quando existiam, eram edifícios de significado especial para a sociedade, como os templos ou palácios. É só no Barroco, no século XVII, que eles vão ganhar perspectiva, ser vistos desde longe através de eixos visuais que a abertura das avenidas (outra novidade) propiciava. As demais edificações, de resto, sempre foram construídas lado a lado. Podiam ser alinhadas ou não aos caminhos que formavam verdadeiros corredores para acessá-las. Na Idade Média, o desalinhamento era total e, muitas vezes, os andares superiores iam se projetando sobre as ruas, deixando apenas frestas de luz aos estreitos caminhos. Por milênios, nunca houve segregação de nenhum tipo nessas ruas-corredores. Era tudo compartilhado, não havia calçadas como as de hoje, como escrevi em Rua Nua e Crua. Tanto o espaço público quanto o privado formavam verdadeiros amontoados – isso para os nossos olhos educados com outra cultura, a moderna. Resquícios desse modo de viver podem ser vislumbrados em nossas cidades coloniais protegidas pelo IPHAN, como Ouro Preto e Paraty.
O século XIX foi pródigo na especialização das ciências. Foi também quando nasceu a ciência urbana, o urbanismo. A cidade passou a ser analisada e medida, compreendida em suas minúcias. Camillo Site escreveu, no final do século XIX, o livro A Construção das cidades segundo seus princípios artísticos, onde ensinava as melhores proporções entre a altura das fachadas e a largura das ruas ou praças. Em um livro bonito, juntava arte e ciência. Dizia, entre tantas outras coisas, que as praças eram salas sem teto e assim deveriam ser tratadas. Entenda-se, os edifícios formavam as paredes da sala, uns colados nos outros, portanto. Aqui ainda estávamos na metrificação da cidade antiga, no terreno da arte, mas logo a ciência urbana avançaria em direção à divisão e estudo de cada parte da cidade em busca de especialização e otimização. Há aí também influências do pensamento econômico, da organização das fábricas e, também, higienistas em função das epidemias que grassavam nas cidades.
No início do século XX, então, o urbanismo passa a indicar receitas revolucionárias para a organização eficiente do espaço urbano. E a melhor referência de organização vinha das linhas de montagem de fábricas como a Ford (daí o termo fordismo). Não sei se Henry Ford leu O Capital, de Marx, mas sei que ele soube como ninguém botar em prática os ensinamentos do ganho de produtividade gerado pela divisão do trabalho. Essa teoria, transposta para cidade, significou a especialização de bairros por ramo de atividade. Tudo isso, na prática, para nós cidadãos, resultou em jornadas de deslocamento cada vez maiores entre moradia e trabalho, comércio, lazer, educação etc. A questão do transporte urbano ganhou uma dimensão jamais vista ou imaginada e a opção pelos automóveis fez sorrir o Sr. Ford. Avenidas, vias expressas, estacionamentos, um grande empenho de dinheiro e energia foi transformando nossas cidades no que são hoje.
A receita para as moradias foi a do edifício isolado e eu não saberia precisar se isso se deu somente por razões científicas – higienistas e construtivas – ou também por razões narcísicas: as dos moradores e as dos arquitetos. Cada edifício poderia ser reconhecido em sua individualidade, um objeto artístico assinado. Isso, claro, só aconteceu excepcionalmente. O resultado padrão é o que se pode ver, por exemplo, no bairro Moema em São Paulo. As leis urbanísticas deixadas à vontade da construção civil resultaram num paliteiro sem graça, em calçadas vazias e sem vida. Cada prédio ali substituiu três, quatro casas que formavam um agradável bairro residencial. O mesmo processo está ocorrendo nos bairros mais tradicionais de Porto Alegre e de quase todas as cidades brasileiras. Aliás, todas, cada vez mais, parecidas umas com as outras.
Toda essa história tem por trás uma ideologia, um espírito do tempo. E, como sempre, muitas meias verdades circulam por aí, acobertando interesses de outra ordem que não o do bem viver. Uma delas é a densidade. Você já deve ter ouvido a frase “é preciso verticalizar para melhor aproveitar a infraestrutura”. Será mesmo? Bairros densos, compactos e que atendam as diversas dimensões do ser humano na sua vida cotidiana estão na ordem do dia mundo afora. Então adensar é importante? É. Mas de que forma? O argumento usado para que o bairro Moema se transformasse no que se transformou foi a necessidade de aumentar a densidade para aproveitamento da infraestrutura existente (outra falácia). A verticalização seria a única forma? Não!
Termino com uma notícia que imagino desconhecida pela maioria dos porto-alegrenses: o bairro mais denso de Porto Alegre é o Bom Fim. Um bairro relativamente baixo, compacto, com calçadas agradáveis com comércio, restaurantes e serviços. Bom de caminhar, bom de viver. O segundo bairro mais denso de Porto Alegre é a Cidade Baixa. Surpresos? Temos a tendência a achar que seriam os que estão cheios de torres, de edifícios muito altos. Pois não são. Há alternativas muito mais interessantes e saudáveis para se produzir o bem viver.