Estou numa fase de impaciência com filmes e séries. Começo a ver, logo me encho e mudo para outro entretenimento. É o que dá estudar roteiro de cinema. A gente vê o que tem lá dentro do reloginho e adeus deslumbramento.
Foi o que aconteceu quando assisti Os Fabelmans (foto da capa), vagamente inspirado na infância do cineasta Steven Spielberg. Nem sei por que optei pelo longa, nunca fui afeito a autolouvações. O fato é que acabei por escolhê-lo como forma de distensionar um dia cheio de reuniões e compromissos chatos. Com o andar da carruagem, entretanto, a narrativa passou a me entediar. Quando já ia desligar a TV, surgiu uma cena que me acendeu: o pequeno Sammy Fabelman ganhara dos pais um trem elétrico da marca Lionel. Com locomotiva de metal e vagõezinhos para transporte de leite, lenha, passageiros, carvão. Exatamente igual ao que Papai Noel me ofertou aos seis anos.
A partir dali, Os Fabelmans ganhou sobrevida. Eu olhava para a personagem interagindo com o seu trem Lionel e as lembranças interagiam comigo.
Tudo teve lugar nos anos 1960. Meu pai, piauiense de Teresina, tinha como melhores amigos o judeu Goldstein e o alemão Johannes. O israelita era descendente de presos em campos de concentração nazistas. O germânico, ex-soldado do exército de Hitler. Os três se descobriram em São Paulo (algo assim só seria possível no Brasil), numa fábrica de autorrádios. Goldstein e meu pai administravam a área comercial da firma; Johannes, o setor eletroeletrônico.
Num dos encontros daqueles improváveis amigos, curioso que sempre fui, escapei da sala e me embrenhei pela residência do teutônico. Fui parar no porão e, para meu terror, vi pendurado ali um velho uniforme de guerra, as botas ainda borradas de lama.
Repentinamente, Johannes acendeu as luzes e me explicou que guardara a farda para se lembrar de quando desertou e passou dias pelos bosques fugindo, até se entregar aos Aliados.
O medo deu lugar ao prazer. Não pelas explicações do ex-combatente da II Guerra, mas porque enxerguei a mais completa rede ferroviária em miniatura que havia visto na vida. Naquela cave, em volta dos trilhos, estava a estação, sinais luminosos, viadutos, cancelas, e até laguinhos feitos de espelho. Notando meus olhos se arregalarem, o anfitrião colocou seu boné de maquinista e botou a locomotiva para se mexer.
Em pouco tempo, o judeu e o piauiense se juntaram a nós. Todos haviam se tornado condutores de trem no porão. Talvez tenha sido o momento mais mágico da minha meninice.
Só não foi mais do que a manhã de um 25 de dezembro em que despertei e vi minha própria composição Lionel aos pés da cama. Agora, já podia brincar em domicílio.
Décadas depois, Goldstein faleceu. Estávamos meu pai e eu em seu enterro, quando Johannes surge no cemitério. Tinha na cabeça não mais o quepe de ferroviário, mas um quipá.
Trêmulo e inseguro, disse baixinho:
– Osvaldo, eu estou parecendo um gói? Não podia deixar de dar o meu adeus ao Goldstein…
Papai o tranquilizou. Seguimos reverenciando a memória do velho amigo, sendo que Johannes era o mais comovido de todos.
Só por essa recordação valeu a pena ter visto Os Fabelmans até subirem os letreiros.