Casaram-se o Vitor Necchi e o Rafael Daudt.
Foi ontem, e eu estava lá. Quer dizer, foi anteontem, e eu não estava.
É que ontem foi primeiro de maio, e o cartório não trabalha nos feriados.
O Vitor, exímio escritor, chegou a mandar um e-mail para o tabelião, clamando com palavras prodigiosas a exceção de sua presença na cerimônia oficial de ontem. Deu em nada. A arte também tem lacunas, disse Bellow para Roth. E tabeliões não se comovem com uma boa escrita.
Por isso, casaram já casados. Primeiro de maio. No bar Ocidente, onde haviam se conhecido, há 27 anos. Eu estava lá, com mais 599 convidados. O índice de adesão foi praticamente de cem por cento. Ninguém largava a mão dos noivos.
No mais, um casamento como outro qualquer. Só que não. Só que não por ser um casamento gay, mas por ser um casamento gay que precisou esperar quase trinta anos e viver cenas como o Rafael ser considerado solteiro, quando perdeu a mãe.
Vitor e Rafael, afinal, já estavam casados, desde o começo, há quase trinta anos. Sei disso. Sou um dos 600 amigos. Já bebi com eles, já comi com eles, já publiquei com eles.
Mas eu ia falar de próteses, e elas estavam lá. Algumas essenciais como a cardíaca ou a de olho, outras nem tanto, como a dentária e a mamária.
Próteses. De buquê não precisou, que buquê não tinha. Segundo os noivos, isto é coisa de hétero.
Sobre filhos de um casamento já tão longevo, sabemos que não é prótese essencial, mas estava lá. Mais de dez afilhados assumindo com o amor o pacto de filiação de lá para cá e de cá para lá. Serem cuidados pelos noivos, no caso da falta dos pais biológicos. Cuidarão dos noivos, daqui a uns quarenta anos.
E tem a prótese de pai e mãe, essa sim essencial, cardíaca. Ninguém se casa órfão. E levar trinta anos para casar corre o risco de os pais biológicos não estarem mais por ali. Eles correram. Pagaram o preço e até mais caro: o pai do Vitor talvez nem fosse, se estivesse vivo. Mas pouco menos de dez pais e mães protéticos deram conta das ausências. Estavam ali, na primeira fila do altar erigido com muita beleza no bar Ocidente, com direito a flores (não de buquê) e rima em frase para dar conta. Abraçavam orgulhosos seus filhos sem aspas com uma força muito maior do que a biológica. Uma força construída. Uma força de adoção.
Faltou falar de uma prótese, essa para uma sociedade preconceituosa que levou tanto tempo para reconhecer a diferença, da qual fez pouco caso, vista grossa e até mesmo crimes diagnósticos. A prótese para uma sociedade escrotinha. Essa não foi fácil. Para ela, não podia ser pouco menos ou mais de dez. E foi preciso 600 pessoas coesas, focadas, apaixonadas pelo Vitor e pelo Rafael. Transcendendo acolhida e aceitação. Amando mesmo e gritando o seu amor pelos noivos.
Enquanto isso, o Rafael fazia uns votos bem-humorados, embora embasados. E o Vitor fazia uns embasados, embora bem-humorados.
Diante deles, nós, as 600 pessoas. Da literatura, do cinema, da vida em si. Só montadores de filme eu vi dois, o Milton e o Giba, que não precisaram editar nada. As cenas se desenvolviam filmadas com realismo no plano perfeito, nada sobrando, nada faltando.
Uma ressalva: o Rafael, durante os votos, não conseguiu definir o amor, mas talvez este estivesse ali mais do que definido, pois, ao contrário daquela celebração magnífica de um casamento, ele em si era um vínculo que dispensava próteses.
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Foto da Capa: Acerto do Autor.