Eric Nepomuceno, um dos maiores contistas brasileiros (leia Coisas do Mundo, Quarta-Feira… e comprove), é meu amigo há mais de três décadas. Nesse período, nos encontramos por várias vezes em redações, feiras literárias, centros culturais, cafés, bares e restaurantes. Por essa proximidade, sei que Eric tem boa memória e que sabe recordar com carinho de as pessoas que foram fundamentais na sua formação intelectual e humanista. Dois exemplos me ocorrem rapidamente: Vinicius de Moraes e Astor Piazzolla.
Os dois evocam uma memória antiga e que tem Buenos Aires como ponto de partida.
Eric morou lá no começo dos anos 70, quando a capital argentina era ponto de encontro de – além dos dois já citados acima – outros tantos nomes importantes como Ferreira Gullar, Julio Cortázar, Eduardo Galeano, José Carlos de Oliveira, Horacio Ferrer, Chico Buarque, Alfredo Zitarrosa, Juan Gelman, Flavio Tavares e muitos mais.
Buenos Aires era, então, a mais cosmopolita das metrópoles da América do Sul. E era ainda um respiradouro em meio a um continente que ficava cada vez mais asfixiado.
Tudo iria mudar no dia 24 de março de 1976. E novamente Eric se recorda: “A coisa vinha de horror em horror fazia uns dois anos, é verdade. Mas ninguém podia prever o que viria depois. E preferi lembrar dos tempos em que fui feliz como um menino nessa cidade mágica, quando as esperanças eram jovens, e meus amigos perambulavam por ali. Em Buenos Aires, onde morei entre fevereiro de 1973 e julho de 1976, amei e fui amado, fiz amigos para o resto da vida, fui feliz de dar inveja. Ali, aos oito ou nove meses, meu filho engatinhou pela primeira vez, e olhou o mundo enquanto se equilibrava sobre suas pernas bambas. Esse é um tempo que ninguém me devolve. Essa é uma memória que ninguém me rouba. Meus cafés fazem parte da lista dos desaparecidos. A memória, não”.
Assim, também exaltando a memória, me lembro que foi Eric quem me apresentou – literariamente falando – o poeta Juan Gelman.
Morto aos 83 anos, em 2014, Juan Gelman teve a vida marcada pela perda de um filho, Marcelo, vítima da ditadura militar argentina (1976-1983). Gelman morreu no México, onde morava há mais de 20 anos, e ele esteve pela última vez na Argentina em agosto de 2013. Poucos anos antes, Gelman encontrou sua neta, Macarena, que nasceu no Uruguai, onde sua mãe, Maria Claudia, também vítima dos militares, esteve sequestrada. A história de Gelman e sua neta é prova contundente da sinistra Operação Condor, o plano de ação conjunta entre as ditaduras do Cone Sul nas décadas de 70 e 80.
O encontro com sua neta foi notícia no mundo inteiro e o caso foi um dos mencionados no julgamento sobre a Operação Condor e, também, o chamado plano sistemático de roubo de bebês durante a ditadura, que terminou com a condenação a cadeia perpétua do ditador Jorge Rafael Videla, falecido em março de 2013. Macarena é filha de Marcelo Gelman e Maria Claudia Garcia, sequestrados em Buenos Aires em 24 de agosto de 1976. Na época, Maria Claudia estava grávida de sete meses e meio e foi levada para o Uruguai, onde deu à luz a sua filha. O bebê foi deixado na porta da casa de um policial aposentado, que criou Macarena junto com sua mulher. Desde que sabe a verdade, a neta de Gelman tornou-se uma militante pela defesa dos direitos humanos. E uma intransigente defensora da memória.