O início dos relacionamentos, seja em que idade ocorrer, é sempre um desafio, pois envolve conhecer o outro e permitir que o outro nos conheça. Este processo seria simples se nós não fôssemos tão complexos, tão cheios de trancas, fechaduras e segredos, que muitas vezes nem nós mesmos sabemos que temos. Então, ao nos relacionarmos com outra pessoa temos a oportunidade de conhecê-la, bem como de descobrir aspectos da nossa própria personalidade. Nos relacionamentos ocorrem o compartilhamento de planos, desejos e, às vezes, até de grana. Enfim, se os relacionamentos de amizade já são exigentes, os amorosos muito mais ainda.
Falei do processo de conhecimento e dos desafios para manter um relacionamento amoroso, mas existe um desafio prévio, que é o de encontrar a outra pessoa. A dificuldade de encontrar pessoas dispostas a experimentar um relacionamento levou ao surgimento dos aplicativos de relacionamentos e de outras estratégias menos tecnológicas. Soube que algumas pessoas costumam fazer listas de características que esperam encontrar na outra pessoa e, antes de dormir, elas mentalizam esta lista e pedem para o santo, jogam para o universo ou para a força superior que acreditarem. Me disseram que funciona!
Eu li a “lista de desejos” de uma amiga em que constava: “ser uma pessoa alegre, bem-humorada e de bem com a vida, …” Então perguntei: “Se a pessoa for bipolar, serve?” Aproveitei para citar os resultados de um estudo da Universidade de Stanford, que mostra que 15% a 20% da população mundial é neurodivergente. Bem, aí a conversa tomou outro rumo e, mesmo eu sendo apenas um leigo interessado no assunto, contei que nesta semana lançamos no nosso podcast o episódio “PodSer Neurodiversos na Universidade?”, onde entrevistamos uma professora universitária que aos 46 anos fechou o seu diagnóstico de autismo e uma mestranda que foi diagnosticada com TDAH com 18 anos. Aprendi muito com elas. Chegamos neste assunto porque eu estava argumentando que o comportamento de qualquer pessoa pode mudar ao longo do dia ou da semana, e dos neurodiversos mais ainda. A pessoa poderá estar de bem com a vida no primeiro e no segundo encontro e mal-humorada no terceiro.
Mas, afinal, o que são pessoas neurodiversas? São pessoas com desenvolvimento ou funcionamento neurológico diferente do padrão esperado (neurotípicos) pela sociedade. O conceito de neurodiversidade foi criado pela socióloga Judy Singer em 1998. Entre os neurodivergentes estão as pessoas com TDAH, Transtorno do Espectro Autista (TEA), Dislexia, entre outros. Ao ter este desenvolvimento diferente, estas pessoas enfrentam dificuldades para se adaptarem a determinadas situações consideradas “normais” pelos neurotípicos.
Os neurodiversos, mais do que os neurotípicos, costumam perder ou esquecer onde colocaram alguma coisa, precisar de mais tempo para fazer uma tarefa, são intolerantes ao barulho e a lugares movimentados etc. Uma vez que conhecedores dos gatilhos que lhes afetam, os neurodiversos conseguem comunicar suas necessidades e precisam do suporte, tanto da sua parceria como de toda a sua rede de apoio. Contornadas as suas necessidades, conseguem levar a vida como as demais pessoas. Aliás, “as demais pessoas” também possuem suas dores e limitações, que muitas vezes fazem questão de ocultar.
Acredito que causaria um certo impacto se perguntasse a alguém se estaria disposta a iniciar um relacionamento com uma pessoa autista, pois ainda existe muito preconceito e desconhecimento sobre os neurodivergentes. Fiz um exercício e lembrei de várias pessoas que foram meus colegas, amigos e familiares que não foram diagnosticados, mas que provavelmente fossem neurodivergentes. Você também deve ter tido um colega que ia muito bem nas provas, que era considerado o gênio da turma, mas que tinha muita dificuldade de relacionamento. Tinha também alguém que era muito engraçado, sempre rodeado de amigos, mas depois quando adulto teve problemas de depressão, alcoolismo etc. E o tio aquele que diziam que “era de lua”, um dia estava brincalhão e outro de cara fechada? Tinha uma prima que chamavam de burra porque tinha dificuldades de ler, provavelmente ela tivesse dislexia. Enfim, convivemos com estas pessoas atribuindo adjetivos que hoje recebem nomes científicos. Ao contrário do que parece, ao receber o diagnóstico, as pessoas se sentem aliviadas, pois eles entendem por que são como são e a partir de então podem comunicar e buscar construir uma rede de apoio.
Depois da conversa com a minha amiga, ela demonstrou interesse em conhecer mais sobre o assunto e ampliar a lista de qualidades desejáveis. Lembrando que os transtornos não são deficiências, pois não são incapacitantes. Cada um de nós é diferente, o que precisamos todos é de autoconhecimento e de empatia para conviver com os diferentes.
Referência:
Podcast PodSer Projeto de Extensão – #5 PodSer Neurodiverso na Universidade?