Ainda ando de ônibus. Embora a pressão da vida contemporânea tenha me feito ceder muitas vezes ao Uber, sempre com uma dor na consciência pela constância com que capítulo diante da alternativa mais fácil – não serve de defesa nem de consolo, mas o serviço de ônibus decaiu com a mesma intensidade vertiginosa com que se proliferaram os aplicativos de transporte. Ônibus tem se tornado uma forma de transporte pela qual administrações municipais claramente não se interessam mais.
Tabelas de horários são ficções sociais nas quais não se pensa muito sob pena de fazer o sistema inteiro colapsar por completo. E nunca vou perdoar a atual administração pela venda da Carris, mas sobre isso já falei noutro texto (este aqui).
A frequência com que eu ponho link dos meus textos antigos nos meus textos novos me faz pensar se não estou me repetindo nestes artigos. Não tenho uma resposta simples. Por um lado, eu mesmo sempre admiti que não sei muita coisa sobre muita coisa, o que talvez explique meu retorno, ainda que de viés, aos mesmos assuntos. Certa vez, idealizei a ideia de escrever um romance composto de variações sobre o mesmo enredo uma vez e mais outra, sempre explorando a cada nova história um novelo que, se puxado, mudaria completamente a feição do conjunto. Desisti da ideia depois de escrever três variações porque cheguei à conclusão de que, se aquilo estava sendo chato pra mim, imagina para os leitores…
A questão é que, como qualquer pessoa com uma vida do espírito, tenho lá minhas obsessões. E aqui não uso “vida do espírito” no sentido pernóstico que muitos dão à expressão como um pendor pela “fruição das belas artes e da cultura”. Não sou desse tipo de opinião ingênua (e também muito conservadora), de que a “cultura eleva o espírito” – conheci muito calhorda com um impecável currículo cultural. E também, tendo recentemente lido o livro de crônicas do José Falero para um projeto aí do qual falarei no futuro, percebo que esse meu pensamento vinculando a vida do espírito com o desenvolvimento de obsessões temáticas tem nesse livro mais um exemplo.
Mas em que mundo tu vive?, de José Falero, reúne mais de cinco dezenas de crônicas nas quais o autor ao mesmo tempo se repete o tempo todo, mas sempre acha um ângulo novo para o que gostaria de dizer. Ele fala da sua vida dividida, vivida em parte na Lomba do Pinheiro e em parte na Cidade Baixa, e sobre como o período na Cidade Baixa o deixou para sempre com uma raiva feroz pelo bairro todo progressistinha no qual ele sempre se sentiu hostilizado. Fala de racismo, de seu despertar político, de sua consciência gradativa da inescapabilidade da cor da pele (só diz que não importa a cor da pele quem de fato nunca precisou se preocupar com isso). Fala com lirismo e fúria do Pinheiro em que cresceu. Fala, claro, muito dos ônibus de Porto Alegre. De pegar ônibus, de não ter condição de pegar mais de um ônibus ou de pagar a condução e uma gelada, ou uma passagem e um doce ao mesmo tempo, e então conta como muitas vezes precisa eleger a longa jornada a pé por qualquer desses motivos. Fala também, numa espécie de autobiografia intelectual distribuída por todo o livro, de algo que ele já havia também mencionado em seu romance Os supridores: a vida do espírito não está distante dos pobres por desinteresse inescapável, e sim porque uma das coisas necessárias para a vida do espírito é tempo. Outra, é a mínima condição de fazer uma curiosidade despertar e ser alimentada. E aos pobres deste mundo faltam os dois.
Em uma cena de Supridores, a esposa de um dos protagonistas, com a vida tornada menos miserável pela grana que está entrando enquanto o esquema de venda de maconha que é o centro da narrativa está na curva ascendente, começa a perceber justamente isso. O modo como ela pensa e presta atenção no mundo está mudando, e está mudando pelo simples fato de que um peso irracionalmente pesado, o da incerteza diária sobre a comida na mesa no dia seguinte, foi retirado dela. Que se tenha naturalizado que esse peso é o preço a pagar para viver é uma das facetas mais escrotas do atual capitalismo fã de bilionário contemporâneo…
Um dos elos entre o tempo dos pobres e a vida do espírito poderia estar no ônibus – longos trajetos, tempo para matar, janela ampla etc. Mas até isso obedece, lembra ele, a questões de classe. Há diferenças entre dois ônibus que partem para o mesmo destino, como ele flagra na crônica C98 e D43 (ponho o link porque a coletânea reúne textos publicados na Matinal), mostrando que há uma disparidade absurda entre a forma como a primeira linha de ônibus é gerida em comparação com a outra. Ele mesmo explica:
“…Ano passado, quando comecei a estudar no Colégio de Aplicação, me dei conta de que o C98 era a linha que melhor me servia na ida do Pinheiro pro campus. Mas, ao longo do ano inteirinho, eu só consegui entrar no bendito duas vezes. Duas míseras vezes!
E parece que o descaso da empresa com a linha não é segredo nenhum. Na primeira vez que consegui pegar o C98, fui logo perguntando os horários pro cobrador. Daí, ele me disse o seguinte:
— Vixe! O horário deste aqui? Não me faz pergunta difícil! (…)
Esse é o ônibus que cumpre a nobre função de levar a comunidade da Lomba do Pinheiro ao campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: passa quando passa.
(…)
Claro que nem todos os ônibus que saem do Pinheiro são assim. Outras linhas têm horários bem definidos, cumpridos religiosamente, e já chegam na Bento Gonçalves cuspindo gente pelas janelas. Conheço bem essas linhas. Ô, se conheço! São as linhas que levam o pessoal da Lomba pra limpar o chão e virar concreto em todos os cantos da cidade.
Outro ônibus que comecei a pegar com frequência ano passado foi o D43. Esse me servia quando tava pelo Centro e precisava ir pro campus. Mas o D43 é outro nível! Ar-condicionado, poltronas confortáveis, passa um a cada minuto — e mesmo assim nunca tá vazio!
Ora, mas é claro que nunca tá vazio! Como poderia estar? Porra, o ônibus tá indo pro campus Vale, e vai passando nas regiões centrais da cidade, que é justamente onde moram as pessoas interessadas em ir pro campus Vale: pessoas que pensam que passar fome é ir dormir sem jantar, e que não saberiam dizer por qual lado se pega uma vassoura.”
Nos anos 1990 e início dos 2000, havia uma banda chamada Belle & Sebastian, famosíssima em Porto Alegre, justamente entre essa galerinha que o Falero comenta no seu texto. Em uma de suas canções mais conhecidas, The state I am in, o compositor Stuart Murdoch encaixou um verso que eu nunca entendi muito bem, ou entendi e achei o que havia entendido uma palhaçada, vai saber. A certo ponto, ele diz: “Ah, e agora me sinto perigoso / Andar por hobby nos ônibus urbanos é triste“.
Anos mais tarde li uma entrevista de Murdoch dizendo que compôs muitas canções andando a esmo de ônibus simplesmente porque o serviço em Glasgow era um dos melhores da Europa e ele passava o dia inteiro neles. E ainda assim ele diz que a coisa toda é triste, o que me leva a pensar: fã ou hater? O que eu sempre entendi desse trecho é que só ter isso para fazer, andar de ônibus a esmo, é triste. Mas isso me leva a inquirir por que determinada fatia da jovem classe confortável porto-alegrense nos anos 90 e 2000 queria tanto ser escocesa e ouvia essa naba o tempo todo. Andar de ônibus a passeio todos os dias sem problemas e ainda achar triste é muito “mãe, tou triste, acabou o Quick de morango” pro meu gosto.
Entro no T11 e começo a ler um romance ao mesmo tempo audacioso, interessante e arriscado. Lendo, reconheço a audácia, mas vejo o interesse ser gradativamente esmagado pelo peso do risco. O livro me lembra de outro lançado há muitos anos, mas que não tem nada a ver com este a não ser compartilharem, ambos, um rótulo de gênero que poderia servir como etiqueta em estantes de livrarias: romance histórico.
A lembrança não é tanto do romance em si, mas de uma crítica que um amigo escreveu sobre ele na Folha de São Paulo e detonou, na época, uma grande discussão sobre determinados aspectos da representação ficcional. Determinadas perguntas que o crítico faz à obra e que claramente o autor não fez, tanto naquele caso como neste.
Fico pensando então em diversas técnicas usadas por diversos escritores para equilibrar a questão espinhosa de construir uma história com “verossimilhança histórica”, seja lá o que seja isso. Quando essa verossimilhança é apenas superficial ou varia muito de acordo com o quanto você está envolvido no pacto autor-leitor a ponto de relevar que determinados termos, determinados pensamentos, determinadas expressões, determinados discursos ditos por determinados tipos de personagens estejam sendo retratados em um período em que claramente não teriam sido possíveis, ao menos não da forma como aparecem.
Divago pensando que talvez agora eu esteja me contradizendo, algo que eu faço sempre, já que em outras vezes, tomando café com amigos, também eles escritores, eu disse exatamente o contrário: o quanto havia me incomodado um uso casual de um termo anacrônico numa fantasia medieval como Game of Thrones. Fico em dúvida sobre qual das duas posições eu de fato defendo, ou se eu só aceito o fato de pensar coisas diferentes de acordo com o contexto e a pessoa, o que não está longe daquela tolerância elástica com o pacto ficcional autor-leitor da qual falei há pouco. Quando finalmente lembro que devo voltar ao romance, minha parada já aponta na janela e só tenho tempo para apertar o botão.
Devanear no ônibus também é privilégio, por vezes. Olivério Girondo, grande autor argentino, tem um livro chamado 20 Poemas para ler no bonde. Muitos deles trazem lindas descrições oníricas da cidade, da rua, do caos urbano e de um mundo de passagem. Um deles, chamado Pedestre, traz o seguinte trecho:
Com um braço preso à parede, um poste apagado tem a visão convexa da gente que passa de carro.
Os olhares dos transeuntes sujam as coisas expostas nas vitrines, emagrecendo as pernas que pendem sob os capuzes das vitórias.
Junto ao meio-fio, um quiosque acaba de engolir uma mulher.
Passa: uma inglesa idêntica a um farol. Um bonde que é uma escola sobre rodas.
Lindo, mas não pra todos. Você subiu carregado de coisas e não encontrou lugar na condução lotada, boa sorte em ter visões como a de Girondo ou ideias como estas anotações vadias que vou tecendo ao sabor das paradas e dos corredores.
Meu amigo Pedro Gonzaga escreveu aqui mesmo na Sler, em mais de uma ocasião, que se tornou um leitor no ônibus (a repetição do tema me mostra que Pedro também tem suas obsessões). O professor Flávio Kiefer em suas colunas, também elas recheadas de obsessões (nunca frustrantes, mas muitas vezes frustradas pelas escolhas do poder público) já várias vezes comentou o quanto o manejo do sistema de transporte coletivo também é um exercício de poder e de imposição de classe – já que as decisões são tomadas por quem não usa o serviço e o preço alto da passagem isola comunidades inteiras e impede o exercício mais simples, o do ir e vir.
Aliás, como eu já havia dito naquele primeiro texto que elenquei lá no início, eu não sou engenheiro de tráfego, mas tenho uma vantagem sobre qualquer gestor do transporte público em Porto Alegre: eu uso a porra do ônibus. Eu sei, por exemplo, que pôr mensagens edificantes de coach no letreiro do ônibus, como andou se fazendo agora, é uma sabotagem ao usuário do ônibus, porque você está ocupando com baboseira de coach o espaço que deveria ser o mais importante para a informação da linha ao passageiro. Até terminar de passar o “tenha um bom dia” de um bólido em movimento, lá se foi a condução. Boa sorte na próxima, fica aí passando frio na parada, Charlinho, seu otário…
Andar de ônibus por necessidade em Porto Alegre pode ser mais triste que qualquer hobby, Murdoch, seu Nutella.
Foto da Capa: Robson da Silveira / SMS-PMPA
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