Entre pedra e madeira, em uma casa típica de Big Bear Lake, na Califórnia, há um velho japonês. Ele é tão velho que a sua pele é fina, transparente, encarquilhada. Debaixo dos olhos, há duas bolsas inchadas com aquela pele e mais o que ela encobre; nada que o impeça de sorrir, como um menino, para quem chega. A coluna vertebral está inclinada para frente e para os lados. Os dois lados, daí os movimentos lentos, em uma velocidade indetectável por um velocímetro padrão. A energia que lhe sobra está apontada para fazer sushi.
O velho japonês é sushiman do único restaurante especializado de Big Bear Lake. Não se pode saber há quanto tempo ele está ali realizando a sua tarefa diariamente, sem domingos nem feriados. Não compreenderíamos o inglês que entoa, voltaremos a isso. Pela precisão dos movimentos das mãos, superando artroses profundas da idade, podemos supor que faz muito tempo. Não nos deteremos mais no corpo aparentemente cansado, nem no olhar afetado pelas cataratas ainda não removidas. Seguiremos a nossa observação através da língua. Porque, para cada cliente que entra no estabelecimento, o velho japonês comunica em alto e bom som, diretamente do seu reversado, atrás de um balcão: “Ãniplas, Âniplas”.
Ao tentar dizer “anyplace”, está convidando os clientes para se sentarem em qualquer lugar entre os disponíveis no recinto, mas ninguém é capaz de compreender a pronúncia, nem mesmo os americanos de origem oriental. Sem se abater com isso, ele segue repetindo com uma tranquilidade zen: “Ãniplas, ãniplas”. As pessoas giram as cabeças como cães que se esforçam para compreender a linguagem humana, depois dizem palavras ligeiras e que escapam ao ritmo do japonês. Minutos mais tarde, talvez sensibilizado pelos gestos lentos do interlocutor, o cliente entende o comando e, finalmente, escolhe algum lugar. Passado mais um tempo, com muita habilidade e o saber profundo de quem domina o seu metiê, o velho entrega um sushi mais saboroso do que qualquer outro, incluindo o de cidades onde são muitos os restaurantes japoneses.
Não vou me deter no gosto do sushi de três cores, com camarão, salmão e abacate. Seria impossível fazê-lo em qualquer idioma. Vou me focar na serenidade deste velho homem diante da incompreensão do “ãniplas”. Ela me remete à força e à paciência de meus avós imigrantes, oriundos da Europa do Leste, em sua chegada ao Brasil, no século passado, quando não sabiam descascar uma banana ou confundiam “coitado” com “cuidado,” fazendo as suas autoestimas dizerem com firmeza que não eram “coitados”, na hora de ouvirem recomendações de cuidado, ao atravessarem as ruas. Por mais que não fossem compreendidos no português capenga, conseguiam realizar a sua tarefa que era vender as mercadorias que retiravam das maletas, por toda Porto Alegre, incluindo subúrbios distantes. Imagino-os não recuando a vendas nem às contingências de algum negócio intrincado, só porque não estavam sendo compreendidos em seus sotaques de um pobre vocabulário.
Dia desses, assisti com o coração dilacerado a mais um naufrágio de um pequeno barco com muitos imigrantes, entre as costas da África e da Itália. Naquele momento, diante do resgate dos cadáveres de muitos velhos, jovens e crianças (bebês, inclusive), eu me fiz duas perguntas: por que isso acontecia e onde aquelas pessoas poderiam se estabelecer para uma vida sem miséria nem perseguições?
Para a primeira pergunta, não obtive resposta. Na segunda, fui socorrido por um velho japonês que sussurrava aos meus ouvidos: “Ãniplas! Ãniplas!”.
Foto da Capa: Freepik
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